UMA VIDA BOA
(À PROCURA DE UMA RAZÃO PARA VIVER E SER FELIZ.)
Amanda Vides Veras,
Daniel Chagas e Juliane Trevisol
O
TEATRO, além de ser um veículo de
entretenimento, também é vetor para reflexões e tomadas de consciência. Esta é, sem dúvida a grande proposta do espetáculo
UMA VIDA BOA, que vem sendo encenado
no Teatro OI Futuro Flamengo, onde
ficará em cartaz até o dia 25 de maio, de 5ª a domingo, às 20h.
Escrita
por RAFAEL PRIMOT, que me
confidenciou ter sido um processo de criação muito difícil, longo e dolorido, obviamente
pelo tema abordado, e dirigido, muito bem, por DIOGO LIBERANO, a trama procura chamar a atenção do espectador para
a necessidade, ou melhor, a obrigatoriedade de nos voltarmos para a questão da
pluralidade, da aceitação do outro como ele é, com suas qualidades e “defeitos”,
que todos temos, já que “ninguém consegue esconder tudo por muito tempo”.
No caso, a
questão gira em torno da aceitação de uma mulher, que nasceu fêmea, na anatomia,
mas que tem um interior macho, o que gera toda uma gama de preconceitos e
mazelas, que conduzem, via de regra, a um desfecho triste, fatídico e
totalmente desnecessário, o que exatamente ocorre na peça. Bastaria que aceitássemos a singularidade que
cada um traz consigo, desde que nasce, e que a respeitássemos e garantíssemos a
esse ser humano manifestar seus
desejos e paixões, seus anseios e direitos, como cidadão e membro de uma comunidade
maior, chamada SER HUMANO.
Daniel,
Amanda e Juliane
Adorei a frase
do autor do texto, no programa da peça: “Ainda
bem que somos tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão igualmente imperfeitos”.
A
história é baseada num fato verídico, ocorrido há 20 anos, nos Estados Unidos,
e que também deu origem a um filme, MENINOS
NÃO CHORAM, o qual levou a atriz Hillary
Swank a ganhar o seu primeiro Oscar
de Melhor Atriz, em 1999.
Os personagens
são identificados pelas iniciais de seus nomes, mas o fato é que essas iniciais,
que não identificam ninguém, podem, ao mesmo tempo, sugerir que se refiram a cada
um de nós, dependendo de como possamos nos encaixar num dos três personagens da
peça: B, na verdade, Teena Renae Brandon, uma menina que
nasceu mulher e assumiu uma identidade masculina; L, uma cantora medíocre, em busca do estrelato; e J, um ex-presidiário, violento e
manipulador.
B, que sofria o preconceito da
minúscula cidade em que nascera, Lincoln, desde pequena, a começar em casa,
pela própria mãe, aos vinte anos, resolveu abandonar a família e passou a viver
numa cidade próxima, à procura de independência e felicidade, apresentando-se
como um rapaz, travestida em roupas masculinas, com o seio comprimido pra uma
bandagem elástica e usando cuecas, dentro das quais costumava utilizar uma meia
enrolada, para mostrar às meninas o volume de um pênis, desejo incontido, que
havia em sua cabeça masculina.
Juliane,
Amanda e Daniel
Disfarçada,
sob essa nova “identidade”, muito “romântico e atencioso” em se tratando de
relacionamentos amorosos, o “transhomem” se apaixonou por Lana Tisdel, uma adolescente de 19 anos, cantora medíocre, com quem
iniciou um romance, e passou a conviver também com John Lotter, um ex-presidiário, amigo de L, violento e manipulador, como já mencionado, e outros moradores desajustados de uma
cidade do interior, de forte marca religiosa, sem grandes atrativos e
perspectivas para a juventude.
Não
demorou muito para que o segredo de B
fosse descoberto por J, o qual, não
aceitando “ser enganado”, na companhia de um amigo, estuprou e assassinou a indefesa
vítima, de forma brutal. Primeiro, com
tiros e, depois, com golpes de faca, para se certificarem de que haviam
consumado o bárbaro ato de intolerância, numa noite de “réveillon”. É, sem dúvida, até hoje, um dos crimes mais violentos
e comentados dos arquivos policiais americanos.
Daniel, Amanda e Juliane
É
triste e, principalmente, assustador saber que, apesar de todos os avanços da
sociedade brasileira, no sentido da, mais que certa, aceitação de tudo o que se
refere à diversidade sexual, ainda estamos cercados de situações análogas à
vivida pelos personagens da peça. Ainda
ontem, por conta de uma feliz (ou infeliz) coincidência, ouvi, enquanto
dirigia, num programa de rádio, sobre diversidade e pluralidade, uma entrevista
com uma mulher, bissexual, da Bahia, responsável por um movimento de proteção às
mulheres lésbicas e bissexuais, que, segundo ela, em todo o Brasil, são vítimas
de estupros e de outras barbaridades, por parte de homens, para que elas “aprendam
a se comportar como mulheres”. E o que é
pior, segundo ela: isso, muitas vezes, com a conivência da própria família da “pervertida”,
tendo sido ela mesma, a entrevistada, uma das vítimas desse verdadeiro atentado
à liberdade e à dignidade humana.
Juliane e Daniel
A
dramaturgia, de RAFAEL PRIMOT, é ótima. Se não
fosse ridículo o trocadilho, diria que é “um
primot”. Pronto! #fui ridículo! Os diálogos são, na maioria das vezes,
curtos, porém muito incisivos, ásperos, ácidos e bem próximos à realidade linguística
de cada um dos personagens. O que não
falta é ação e cenas violentas, mas “toleráveis”, que fazem a plateia se
envolver emocionalmente com a trama.
A
direção, de DIOGO LIBERANO, é segura e atenta aos limites que cada um dos três
personagens deve atingir, para não cair nos clichês que todos conhecemos. É interessante que se perceba o dedo do diretor
quanto a esse aspecto. A própria personagem
B, que procura esconder sua
verdadeira identidade, sob uma aparência masculina, mantém toques de romantismo
e delicadeza, próprios da mulher, em suas cenas mais íntimas com L.
Com relação a isto, não há nenhuma apelação.
É tudo feito com muita sobriedade e delicadeza.
Falemos
do elenco:
Protagonizando
o espetáculo, estamos diante de uma das grandes revelações deste ano, no TEATRO, ainda com muitos meses pela
frente, para terminar. Trata-se de AMANDA VIDES VERAS, que faz B.
Guardem bem este nome, mas, antes, deem uma conferida no OI Futuro Flamengo. A jovem atriz desempenha um trabalho
comovente e convincente, o que, para ela, deve ter sido um enorme desafio, muito bem
vencido. Em cena, é perfeita sua atuação
e transformação num homem. Fora do
palco, trata-se de uma linda, meiga e gentil mulher. Nada além do “milagre” do “saber fingir”, que
só o TEATRO proporciona às
pessoas. Mas não a todas; apenas às que
demonstram talento para isso.
Amanda Vides Veras
DANIEL CHAGAS, em seu primeiro grande
trabalho em TEATRO, creio eu (pelo
menos, o primeiro de que tenho conhecimento), também executa, com maestria, sua
função. É tão impactante a sua
interpretação, que confesso ter tido o ímpeto de subir ao palco para impedir
seus maus, ou melhor, péssimos tratos a B. A partir da cena da revelação da verdadeira
identidade da transsexual, eu e acho que todos os outros espectadores compramos
a briga de B, assumimos a sua defesa
e passamos a odiar J, essas loucuras
que o “faz-de-conta’ do TEATRO pode
gerar. Depois, dá até vontade de rir de
nós mesmos. Mas isso só acontece quando
os atores são bons e executam seus papéis com talento e muita “verdade”.
JULIANE TREVISOL é a terceira ponta do
triângulo (não amoroso), que também tem uma boa atuação em cena, não se destacando
tanto, em função da menor força dramática de sua personagem. Mesmo assim, a atriz sabe tirar partido do
melhor do seu texto, nas cenas que a favorecem, e faz um belo trabalho.
Amanda e Juliane
Um destaque especial, no espetáculo, vai
para a bela iluminação,
responsabilidade de DANIELA SANCHEZ. Um primor!
Uma das melhores que vi até agora, na temporada de 2014.
Também
merecem destaque os figurinos e o visagismo, de BRUNO PERLATTO, a trilha
sonora original, de DIOGO AHMED
PEREIRA e a cenografia, de BRUNELLA PROVIDENTE. Todos esses elementos contribuem bastante
para a beleza plástica do espetáculo.
UMA VIDA BOA é daqueles projetos que
deveriam ser encampados pelas autoridades ligadas à educação e levados aos
jovens, em parceria com as escolas, para que estes, com sua força persuasiva,
pudessem ajudar na luta contra o preconceito e a favor das minorias, apenas em
números; aliás, cada vez mais, crescentes.
Um
excelente espetáculo, que recomendo e aponto como um dos melhores deste ano,
até o presente momento. Espero que, após
o encerramento da temporada, a peça possa se transferir para outros espaços e permanecer,
por muito tempo, em cartaz, para que um número maior de pessoas possa assistir
a ela.
E VIVA A DIVERSIDADE!!!
E VIVA O TEATRO BRASILEIRO!!!
Juliana Trevisol,
Daniel Chagas, eu e Amanda Veras Vides
(FOTOS DA PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO
E DE MARISA SÁ)
Texto e peça, maravilhosos!
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