À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS
(O NÉLSON RODRIGUES QUE EU APLAUDO DE
PÉ.)
Por
mais de uma vez, já me manifestei quanto a não engrossar a legião de pessoas,
da classe teatral (a maioria) ou não, que idolatram NÉLSON RODRIGUES na condição de dramaturgo. Sob pena de ser execrado por essa multidão,
só tenho a pedir – e esperar – que respeitem a minha opinião, assim como
procuro respeitar a alheia.
Há,
entretanto, uma outra faceta do NÉLSON,
por demais conhecida e também festejada por seus admiradores, de cujo exército,
neste caso, faço parte, de armas em punho. Trata-se
do NÉLSON RODRIGUES cronista, tanto
na categoria “futebol”, uma de suas grandes paixões (aliás, para ele, no lugar
de “futebol”, leia-se Fluminense Futebol Clube, em se tratando de “paixão”, sinal
de sabedoria e bom gosto), quanto nas outras, que tratam das coisas da vida,
principalmente do amor, assinando ele mesmo ou sob o pseudônimo de Susana Flag, por anos seguidos, na
coluna Minha Vida é Pecar, em O
Jornal , extinto matutino carioca. Desse NÉLSON,
sou fã de carteirinha. Muitas dessas
crônicas já foram transportadas, com muito sucesso, para o palco.
Agora,
aproveitando-se de um dos assuntos que dominam a mídia no momento, a Copa do
Mundo, que bate à nossa porta, já no quintal, HENRIQUE TAVARES, teve uma excelente ideia, a de basear-se numa das
mais conhecidas e admiradas crônicas do escritor, O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE, e transformá-la numa deliciosa
peça de teatro, enxertando-lhe trechos de outras crônicas, como COMPLEXO DE VIRA-LATAS, O CRAQUE NA CAPELINHA e O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA, numa
fusão coesa, poucas vezes vista em trabalhos afins.
Gláucio Gomes, Anderson Cunha, Ingrid Conte e César Amorim
A
peça cobre o período que vai da Copa do Mundo de 1950, quando a derrota do
Brasil para o Uruguai, em
pleno Maracanã , reforçou a péssima imagem que o brasileiro tinha
de si mesmo, à conquista do primeiro campeonato mundial, em 1958.
Peço
licença ao adaptador do texto e diretor da peça, para reproduzir parte do que ele escreveu no
programa do espetáculo: “Nélson enxergou, no
futebol, um teatro que envolve todas as paixões humanas. Seus textos são épicos, originais e têm
grande força poética. Ao falar de um
grande craque ou do velório de um velho jogador obscuro, ele apenas usa o
futebol como pretexto para mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a
multidão e o indivíduo, vida e morte”.
São
sessenta minutos que passam como e fossem seis.
Um espetáculo alegre, leve, divertido; simples e oportuno, feito com
muita paixão e competência.
HENRIQUE TAVARES, tanto na adaptação do
texto como na direção, assumiu uma responsabilidade muito grande, contudo, com
sua inteligência, talento e vasta experiência no ramo, contando com um excelente
grupo de colaboradores, conseguiu dar vida a um dos mais recomendáveis
espetáculos do momento.
Assim
como há atores shakespeareanos, não seria nenhuma blasfêmia dizer que, para
representar NÉLSON RODRIGUES, não
basta ter talento e decorar, simplesmente, um texto do autor. Não; é preciso que seja um ator
rodrigueano. Sim, é necessário que ele
saiba mergulhar no universo do dramaturgo e vivê-lo com muita verdade,
representando-o da maneira como ele é, sabendo dizer suas frases de efeito,
marcadas por um vocabulário único, cheio de epítetos típicos de sua linguagem;
ou seja, o “óbvio ululante”.
Poderia
fazer desfilar, aqui, uma dezena ou mais de nomes de atores e atrizes que parecem ter nascido
para representar NÉLSON, mas, para
não cometer injustiça, por omissão, vou me fixar na pauta em questão, restringindo-me
a dizer que o quinteto de atores convidados a fazer parte do elenco de À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS pode
ser incluído no rol dos atores rodrigueanos:
GLÁUCIO GOMES interpreta o protagonista
Otacílio, aquele que vivia sob a
dúvida de vir ou não a ser traído pela jovem e bela esposa, com quem se casara havia pouco tempo. Essa mesma
dúvida o perseguirá, quanto à decisão de matar ou não a esposa, antes, durante
ou após o jogo final entre Brasil e Suécia, depois que um tio, não só lhe
comunica uma traição da esposa, com seu melhor amigo, e com detalhes, como também
lhe cobra uma atitude de “lavagem da honra”.
O ator, que não costuma frequentar a mídia, é excelente e dá ao personagem
o tom exato como este deveria se comportar, sem nenhum excesso, o que poderia
levá-lo ao ridículo. Afinal, marido
traído, quase sempre, foi explorado de forma caricata no TEATRO. Golaço!!!
INGRID CONTE interpreta, com correção, Odete, a esposa “adúltera”, sem cometer
qualquer deslize na interpretação. Sua
beleza e leveza em cena, a despeito de sua pouca experiência nos palcos, em
função de sua idade, são fundamentais na concepção da personagem, que precisa
passar uma ideia de quase pureza e total fidelidade ao marido. Ponto para a atriz.
ANDERSO CUNHA faz o personagem CUNHA, o melhor amigo de Otacílio e o pivô de uma “quase-quem-sabe”
tragédia, além de atuar como narrador, em pequenas passagens, assim como o
fazem os demais do elenco. ANDERSON tem um ótimo “time” para a
comédia (já o demonstrou tantas vezes) e, aqui, é responsável por alguns dos
mais engraçados momentos da peça. Um
craque, esse ator!!!
CRICA RODRIGUES (o sobrenome não é
coincidência; é neta de NÉLSON) tem
uma participação mais discreta na trama, mas é firme e muito engraçada na pele de Madame Crisálida, a falsa cartomante,
que poderia selar o destino do casal
Otacílio e Odete. Marca bem o adversário.
CÉSAR AMORIM representa dois personagens:
o Tio, que irrompe, na casa de Otacílio, com o propósito de alertar o
sobrinho para a traição da esposa, e O
Homem da Capelinha. Nesta cena, CÉSAR está impagável, apoiado no excelente
texto, quando, durante o velório de um “perna-de-pau”, ex-jogador do América,
disserta, para Otacílio, sobre a “pobreza”
em que se transformaram os velórios, desde que foram transferidos das próprias
residências dos mortos para a “frieza” das capelinhas de cemitérios, roubando,
inclusive, às viúvas a “oportunidade de viver seu momento de Sarah Bernhardt”. A cena é hilária e provoca muitas
gargalhadas. Gol de placa!!!
Gláucio Gomes, Ingrid Conte e Anderson Cunha
A cenografia, de JOSÉ DIAS, é bastante interessante: apenas algumas cadeiras em
cena, um aparador (na época em que se passa a história, chamava-se “bufê”) e um
velho aparelho de rádio, sobre o móvel, todos reproduzindo o mobiliário da
década de 50 (estilo chipandelle, se não estou enganado, menos o rádio). Tão logo abriu o pano, a visão do cenário
sacudiu a minha memória afetiva, quando me permiti viajar no tempo, para a
final da Copa de 58 (na cena, era a transmissão da final da Copa de 50), para o
quintal da casa de minha avó, onde toda a numerosa família se reunira, ao redor de um velho aparelho de rádio, a válvulas, semelhante ao da cena, para ouvir
a consagração do Brasil. A transmissão
era péssima, diretamente da Suécia. Não
se conseguia entender bem, ou quase nada, o que o locutor tentava descrever e, quando o
adversário, a Suécia, que veio a perder de 5x2, fez o primeiro gol, eu,
que estava ali mais para brincar com os meus primos do que para torcer pelo
escrete, aportuguesamento para “scratch” (Olha
o NÉLSON aí, gente!), aos nove anos de idade, saí pulando e gritando “Gooooooooool!”, sem saber que estava
festejando o tento do adversário. Tomei
muitos “cascudos” (NÉLSON ataca de novo.),
até entender o mico que estava pagando (Será
que NÉLSON entenderia esse negócio de “pagar mico”?).
A iluminação, de AURÉLIO DE SIMONI, como sempre, é muito boa e importante na peça.
PATRÍCIA MUNIZ acertou em cheio nos
figurinos de época. O do primeiro
personagem a entrar em cena, o de ANDERSON
CUNHA, já me fez soltar uma boa gargalhada.
“Cafona”, diríamos hoje, mas já usei igual.
Embora
não haja, no programa da peça, a autoria da trilha sonora, ela também foi escolhida pelo diretor. É muito agradável, para os da antiga, como
eu, e para qualquer pessoa de sensibilidade apurada e que aprecia uma boa
música, ouvir EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ,
de Tom e Vinícius, na deliciosa voz de veludo de Maysa, e ATIRASTE UMA PEDRA,
de Herivelto Martins, cantada pelo,
também, "aveludado" Nélson
Gonçalves. Ainda há, ao final da
peça, um toque mais contemporâneo, a cargo de Jorge Ben Jor, com sua Umbabarauma.
A
produção está nas mãos de CARLA FAOUR, de quem estamos saudosos
no palco.
Ingrid Conte, César Amorim, Anderson Cunha e Gláucio Gomes
E
por falar em saudosismo, é bom lembrar que a peça não é uma sessão nostalgia;
não é endereçada aos saudosistas de plantão, porém apresenta uma proposta de trazer,
para o presente, um passado cronológico ou "crono-ilógico", ao mesmo tempo, de certa forma,
atemporal.
O
espetáculo fica em cartaz de 5ª a sábado, até o dia 24 de maio, sempre às
19h30min, no Teatro SESI, sendo que, inaceitavelmente, não há sessões aos
domingos, pois, segundo informações do próprio teatro, há receio de assaltos e
ataques às pessoas que procuram um lazer no Centro do Rio de Janeiro, aos
domingos, por se transformar num local deserto e sem policiamento, por total culpa do Estado e do Município
(isto quem diz sou eu), o que, de certo, não faltará na Copa, que se
aproxima e à qual me oponho totalmente.
Parafraseando
o meu amigo Jorge Leão (foi dado o crédito), “o HENRIQUE TAVARES,
com esta peça, conseguiu fazer o que o Tostão fazia: jogar sem bola”.
Não
deixem de assistir a este espetáculo, feito para entreter e resgatar um momento
da nossa história recente, pelas palavras do grande cronista NÉLSON RODRIGUES.
Nélson Rodrigues. Quem sabe,
neste momento, não estaria sendo escrita uma das crônicas presentes na peça?
(FOTOS: FLÁVIA FAFIÃES – PRODUÇÃO /
DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)
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ResponderExcluirGooooooooooooooooooooooooooooooooooooool !!!!!!!!
ResponderExcluirmuito minuciosa a leitura da peça e muito boa. a peça realmente é o que se pode chamar de um espetáculo. Henrique Tavares mais uma vez acertou em cheio e todo o elenco de palco e técnico está perfeito. É uma peça para se ver várias vezes. Ivan Lima
ResponderExcluirCaro Gilberto, obrigado por resenha tão bem escrita, lendo me dá vontade de fazer cada vez melhor.
ResponderExcluiradorei sua estória da final de 58.
convido o leitor para conferir a peça no palco.abraço. GG
Boa!
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