RICARDO
III
Sabe o que é
uma pessoa assistir a um espetáculo, no primeiro terço do primeiro mês do ano,
e sair do teatro, pensando: acabei de ver uma das melhores peças deste ano?
Estranho, não? Julgar algo conhecido, sem saber o que ainda
há por vir. E, certamente, há de vir
muita coisa boa por aí, talvez não tanto como foi o ano de 2013, por causa da
maldita (para mim) Copa do Mundo e
de outras efemérides, ao longo do ano, nas quais o público vai concentrar a
atenção, esvaziando as salas de espetáculo.
Será, infelizmente, um ano de muita dificuldade para atores, diretores,
produtores, técnicos... E de muito vazio
e tristeza para os amantes dessa arte maior. Queira Deus que eu esteja errado!!!
Mas, deixemos
de divagações e vamos ao que interessa: comentar um grande espetáculo de TEATRO, capaz de emocionar e divertir
muito toda uma plateia: RICARDO III,
de William Shakespeare (escrita em 1591),
que assisti, na sua estreia, numa releitura feita pelo talento de GUSTAVO GASPARANI e SÉRGIO MÓDENA, idealizadores do projeto
e adaptadores do texto; aquele, ainda por cima, atuando, e este, dirigindo.
O espetáculo
está em cartaz, no Mezanino do Espaço
SESC Copacabana, de 4ª feira a sábado, às 21h, e aos domingos, às 19h e
30min, até o dia 2 de fevereiro.
Se me
contassem, eu, de certo, não acreditaria.
Mas fui testemunha. Como um
clássico de Shakespeare, uma de suas primeiras peças, escrita em cinco atos e
com uma quantidade enorme de personagens, pode ser transformada em um monólogo?
E, mais sério ainda, como um só ator pode representar toda essa plêiade de
personagens, tão distintos entre si, masculinos e femininos? Mais interessante ainda: como o público pode
entender a história contada dessa maneira, baseada na vida real do Rei Ricardo III, ainda que
muito se especule sobre a veracidade dos fatos?
Parece
impossível, mas não o é. Tudo isso
acontece, em cerca de 90 minutos, num espaço intimista, despojado de
sofisticação, com um cenário muito simples, mas perfeito (falarei, mais adiante,
sobre ele), um único figurino (idem), contando, apenas, com um simples acessório (uma
echarpe).
A história é
contada num tom didático, sem ser enfadonho.
Muito pelo contrário, fazendo as vezes de um professor, GUSTAVO, nos dá uma verdadeira aula de
História, além de um "show" de interpretação, apelando, poucas vezes e com muito bom humor, para uma participação
do público, que embarca, desde a sua entrada no ambiente cênico, na
“brincadeira”, descontraído e, ao mesmo tempo, curioso. Eu, particularmente, era a curiosidade em
pessoa. E saí de lá, a felicidade em forma de gente.
Quando a
entrada é liberada às pessoas, estas já encontram GUSTAVO, de costas para elas, absorto, preparando o seu quadro
de giz. Na verdade, um quadro branco, de fórmica (?), em cuja superfície escreve
com pincéis atômicos, mais conhecidos como “pilôs”. O ator está escrevendo os nomes dos membros das duas dinastias que desejam ocupar o trono da Inglaterra, um
fato histórico, que ficou conhecido como A
Guerra das Rosas, numa alusão aos símbolos de cada uma das dinastias: a rosa
branca, para os York, e a vermelha, para os Lancaster.
Uma "aulinha" com GUSTAVO GASPARANI.
O enredo da
peça é de difícil compreensão, tal a quantidade de personagens, muitos com
nomes repetidos, e a sucessão de ações e crimes bárbaros, encomendados ou, até mesmo,
cometidos pelo tirânico e sádico DUQUE
DE GLOUCESTER, futuro RICARDO III,
de grande obsessão pelo poder, para aplacar, ou se vingar (de quê? de quem?) por
suas deformidades físicas e seus traços nada atraentes às mulheres. Assim, RICARDO se descrevia: “Deformado, inacabado, enviado antes do meu
tempo, / Pra este mundo, que respira ainda mal feito pela metade. / E assim tão
lamentável e horrendo, / Que até os cães me ladram quando manco, ao passar por
eles.” Por uma repulsa a si próprio, pelo
aspecto físico, torna-se, também, um deformado mental, um assassino
contumaz, a despeito de muitos autores, que contestam todos esses detalhes,
classificando-os como “exageros” de Shakespeare, para valorizar sua obra. Assim mesmo, todos são capazes de compreender o que se passa em cena, graças ao trabalho do ator, que, vez por outra, pergunta se todos estão entendendo ou se querem alguma explicação. Fantástico!
Não vale a
pena fazer um resumo do enredo, o que poderia tornar muito desagradável este
texto (mais do que já possa ser), e sim analisar o projeto e o espetáculo.
Quem será este personagem?
GUSTAVO e SÉRGIO, partindo de suas vivências infantis, quando a imaginação
tinha asas e não conhecia limites, tornaram possível transformar a TRAGÉDIA DO REI RICARDO III na simples
forma de RICARDO III, com muita
imaginação e criatividade, próprias do mundo infantil.
Logo após o
segundo sinal, quando a plateia ainda está se acomodando, GUSTAVO explica o que já escreveu no quadro (PLANTAGENETA), com relação aos
personagens e suas relações, de parentesco e de interesses, e vai, a partir daí,
acrescentando mais detalhes, num tom bem natural e descontraído, fazendo,
inclusive, inserções de aspectos do cotidiano atual, incluindo críticas sociais
e políticas.
A direção, de SÉRGIO MÓDENA, não fica nada a dever a
nenhum dos seus grandes trabalhos anteriores, dentre os quais se destaca a
excepcional montagem de A ARTE DA
COMÉDIA, grande sucesso de público e de crítica, no ano passo, no Rio de
Janeiro, em carreira, no momento, em São Paulo. SÉRGIO
e GUSTAVO já foram parceiros de
trabalhos inúmeras vezes, o que facilita bastante a relação diretor/ator.
GUSTAVO GASPARANI, que sempre admirei,
em comédias, dramas ou em musicais, gênero que ele domina muito bem, neste RICARDO III, para mim, está vivendo o
seu melhor momento profissional. Trata-se
de um dos melhores atores da sua geração.
É comovente a sua atuação. Consegue
interpretar vários personagens, como já disse, mantendo as características
peculiares de cada um, não tanto com relação à voz, o que não faz a menor
diferença, mas no que se refere a detalhes de composição de cada personagem. Uma
verdadeira aula de TEATRO! Um grande mestre da interpretação! Trabalho digno de reconhecimento.
O cenário é da competente AURORA DOS CAMPOS. Apenas um enorme quadro de giz branco, uma
cadeira e uma mesa de escritório, que pode ser transformada em outros elementos
de cena. Além destes, um cabide de pé,
numa das pontas, e um abajur, tipo “spot”, na outra extremidade, que, como
elemento surpresa, vai ser utilizado, de forma muito criativa, pela direção,
bem como vários pincéis atômicos, que, até mesmo, podem ser transformados em
“personagens”. Não vou quebrar a
surpresa. Tudo muito lindo! Tudo muito criativo! E tudo muito divertido também!
O figurino, assinado por MARCELO OLINTO, traz o ator vestido com
uma calça tradicional e uma camisa de malha, de manga comprida, gola “V”, ambas
em dois tons diferentes de cinza. Um
tênis branco completa a discrição do traje. Competente criação.
Não se pode
omitir a boa tradução do texto, de ANA AMÉLIA CARNEIRO DE MENDONÇA; a música original e a direção musical, de MARCELO
ALONSO NEVES; a direção de movimento
(excelente) de MÁRCIA RUBIN; e a iluminação de TOMÁS RIBAS.
RICARDO III é daqueles motivos de
orgulho para quem defende o TEATRO
BRASILEIRO como um dos melhores do mundo, pela sua riqueza de matéria-prima
e criatividade.
Um espetáculo que
veio para marcar. Daqui a muitos anos,
ainda se ouvirão comentários, todos elogiosos, sobre “o RICARDO III, do GUSTAVO GASPARANI”.
O impossível
só existe para os fracos; não para GUSTAVO
GASPARANI.
.
O que é quem, nas mãos desse homem?
(FOTOS DE DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)
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