quarta-feira, 19 de junho de 2024

 

“PRIMA FACIE”

ou

(A DESAGRADÁVEL SURPRESA

DE UM BURACO PROFUNDO APÓS UMA CURVA NA ESTRADA.)

ou

“PAU QUE DÁ EM CHICO

DÁ EM FRANCISCO.”

ou

“MASTERCLASS”

DE TEATRO

QUE SE FALA? É!!!




              Ah! O sempre revigorante prazer de assistir, entre um infeliz “equívoco” e outro, infelizmente, a um VERDADEIRO ESPETÁCULO DE TEATRO! No caso, a peça é “PRIMA FACIE”, já em cartaz desde o dia 02 de maio próximo passado, ficando, no Teatro Adolpho Bloch, até 30 de junho (2024), uma raridade, nos dias de hoje – uma temporada de dois meses -, espetáculo que, de saída, já RECOMENDO COM O MAIOR EMPENHO e ao qual assisti na segunda semana da temporada, há mais de um mês e meio atrás, e me deixou extremamente impactado, encantado. Antes de mais nada, quero esclarecer que a vontade de escrever sobre a peça era enorme e pensei até em começar o trabalho tão logo, naquela noite, chegasse a casa, mas só me concentrei nele na manhã do dia seguinte. Este texto já estava quase pronto há muito tempo (Recebeu um oportuno adendo agora.), contudo não havia sido publicado ainda por conta das fotografias, para sua ilustração, que demoraram a me chegar.

 

 

 

   O título da peça deve ser lido como é escrito. Trata-se de uma expressão latina, que, literalmente, deve ser traduzida como “à primeira vista”, modernamente se aproximando do sentido de “em face disso”, “No contexto jurídico, é usada para se referir a uma evidência ou conjunto de fatos que, se não forem refutados, são suficientes para provar uma determinada reivindicação ou conclusão”. Fugindo ao “juridiquês” e tentando aproximar o conceito ao nível de “língua de gente simples”, para facilitar o entendimento, nada mais é do que uma prova considerada cabal, categórica, decisiva, que permita a suposição ou consolidação de um fato, “a menos que seja refutada”. É aí, exatamente, que “mora o perigo”! Isso, porque pode acontecer de uma prima facie” não se sustentar ou cair por si só. Coisas da “Justiça” (Contém ironia.) Como isso pode acontecer? Acontecendo, pois nunca podemos nos esquecer de que “a Justiça é cega”. (Contém sarcasmo. Assumo o que escrevo.) Para não entediar os que me dão o prazer e a honra de ler estas considerações críticas sobre uma peça teatral, julgo ser mais producente e agradável passar logo à SINOPSE do texto.

 

 

 

 

SINOPSE:

Em cena, DÉBORA FALABELLA vive a personagem Tessa, uma jovem, brilhante e muito bem-sucedida advogada de defesa criminal, especializada em defender homens acusados ​​de agressão e abuso sexual, e que, depois, é agredida, passando à condição de vítima.

Vinda de uma família pobre, ela batalhou e venceu no complexo mundo da advocacia.

Ao mesmo tempo que experimenta o sucesso, Tessa precisa encarar uma crise que a obriga a rever uma série de valores e princípios, além de refletir sobre o sistema judicial, a condição feminina e as relações conturbadas entre diversas esferas de poder.

Um acontecimento inesperado a obriga a enfrentar a contraposição do poder patriarcal da lei, a exigência do ônus da prova e a força de uma “moral” machista.

A causídica muda sua visão do sistema jurídico, depois que ela própria foi agredida sexualmente.

 

 

 

 

        Não sei se SUZIE MILLER, a autora deste texto dramático, um dos melhores a que tive acesso nos últimos anos, ao escrevê-lo, tinha a noção do impacto que ele causaria, no público e na imprensa especializada, a ponto de levá-la a ser convidada para debater sobre o tema central da peça numa assembleia da ONU, sobre o abuso contra as mulheres. Isso não se deu por acaso; é fruto do brilhantismo e da transparência de sua escrita, da maneira como ela trata o problema. Ainda mais: o texto de “PRIMA FACIE” passou a ser desejado e disputado por produtores do mundo inteiro e se transformou num vetor para incentivar debates e esforços, com o objetivo de mudar algumas leis britânicas.

 

 

SUZIE MILLER.

(Foto: Wikipédia.)

 

         A violência contra as mulheres é um dos atos dos mais abjetos e desumanos, que, infortunadamente, enfrentamos e ainda são muito acobertados por uma sociedade machista e uma “Justiça” (SEMPRE A GRAFAREI ENTRE ASPAS.) injusta, ainda que algum leve alívio já exista, como, por exemplo, a aplicação da “Lei Maria da Penha”; mas muito ainda tem que ser feito. O tema da peça, além de universal, é, incrivelmente, atual, principalmente agora, no Brasil, quando a sociedade civil se revolta, indignada, contra um considerável número de “parlamentares” (TAMBÉM MERECEM ASPAS.) hipócritas, inclusive (PASMEM!!!) cerca de 40 mulheres, a grande maioria de “falsos evangélicos”, exigindo urgência na votação de um projeto de lei que torna rés, com pena de 20 anos de reclusão, mulheres, de qualquer idade, que procurem um atendimento médico para realizar a interrupção, já legalizada, de uma gravidez indesejada, quando fruto de um estupro, o que equivale a dizer que será mais imputada que o agressor, o criminoso, o “porco ordinário”, o “monstro” que a obrigou, à força de uma violência, a consumar um coito.

 

 

 

  Via de regra, mostro-me muito cético diante de um sucesso estrondoso, meteórico, que se transforma num grande fenômeno, da noite para o dia, com relação a qualquer coisa. Não que isso não seja possível, porém, na grande maioria das vezes, acabo constatando que tudo não passava de um “fogo de palha”, expressão muito usada popularmente, mas que a maioria dos que a usam não se dão o trabalho de entender-lhe o significado: “empolgação que dura pouco tempo; algo que parece intenso e importante, mas que acaba rápido; é transitório, efêmero”, tal qual o efeito veloz e devastador do fogo que se alastra pela palha seca. Era, na verdade, alguma coisa “fabricada”, um falso sucesso, desprovido de qualidade, alavancado pelo poder e pela força da mídia, muitas vezes objetivando algo escuso. Isso, ABSOLUTAMENTE, jamais seria o caso de “PRIMA FACIE”. A ascensão da peça ao topo do sucesso se dá por conta de ser algo pelo que as sociedades, mundo afora, tanto ansiavam ouvir e ver.

 

 

 

“PRIMA FACIE”, uma peça dramática, um verdadeiro fenômeno, uma vez que, desde quando foi escrita, em 2019, pela dramaturga australiana-britânica SUZIE MILLER, vem alcançando números astronômicos, sendo merecedora disso. Estreou, no mesmo ano em que foi escrita, no dia 17 de maio, no Teatro dos Estábulos (Nome mais estranho para um Teatro!!!), em Sidney, Austrália, e, de lá até hoje, já foi encenada em mais de 60 países – Acho isso um fato histórico e digno do maior destaque, se considerarmos que, praticamente, um ano e meio, no meio desse período, os Teatros estiveram fechados, por conta da pandemia de COVID-19.), tendo sido a montagem londrina indicada a cinco prêmios "Laurence Olivier", com conquistas de “Melhor Nova Peça” e “Melhor Atriz”, para Jodie Comer, que, posteriormente, ganhou um Tony Award, pelo mesmo papel, na Broadway. Atualmente, além da montagem brasileira, há muito mais outras, espalhadas pelo mundo. Com relação a prêmios, se prevalecer o critério da meritocracia, a produção nacional deverá abiscoitar muitos prêmios, em várias categorias. Sinto muito, mas se isso não acontecer, esses prêmios poderão perder muito de seus créditos; para mim, pelo menos, além do que já vêm perdendo.

 

 

 

  Digo, escrevo e assino embaixo que aquilo que DÉBORA FALABELLA, como atriz, e YARA DE NOVAES, como diretora, nos proporcionam, sem nem levar em consideração a pujança do texto, em “PRIMA FACIE”, é uma AULA DE TEATRO como poucas vezes se pode ver, uma verdadeira “Master Class”. Para quem, porventura, ainda não saiba o significado da expressão em inglês, ela foi criada a partir da união de duas palavras: “master” (mestre) e “class” (aula), que quer dizer uma aula oferecida por um mestre em determinado assunto: SUZIE, na dramaturgia; YARA, na condução da batuta; e DÉBORA, no ato de “dar vida” à personagem. O espetáculo, que, aparentemente, possa ser de interesse apenas do público feminino, na verdade, é também, praticamente, voltado, tanto quanto, para o masculino. É, acima de tudo, uma obra de arte que merece, a meu juízo, ser alçada ao nível de OBRA-PRIMA. Ajuda as mulheres a aprender como devem se defender ante a inseguridade que enfrenta no seu cotidiano, a misoginia, a discriminação e objetificação sexual e o fato de ser educada a assumir uma posição subalterna e a obedecer a um padrão de comportamento imposto pelo machismo, incluindo o estrutural.

 

 

 

   Em sua melhor atuação, mesmo considerando tantas outras excelentes da atriz às quais pude assistir, DÉBORA FALABELLA, num trabalho de profunda entrega à personagem, regida pelo seu incomensurável talento, na pele de Tesse, narra a história sob o ponto de vista da personagem. Tanto o público leigo quanto aqueles que são “do meio” sabemos que, para qualquer ator/atriz, assumir um papel de protagonista – até porque só existe ele/ela em cena – num monólogo, é um grande desafio. No caso desta peça, parece-me que esse “risco” é superlativado, pelo quanto de emoção o texto oferece à atriz que representa a personagem, exigindo o mesmo dela. DÉBORA, no entanto, assume a empreitada com total correção e faz com que a plateia não perca a atenção e o interesse pelo que vê e ouve no palco. É impossível não se envolver, emocionalmente, com aquela representação, que não parece ser ficção, e sim a mais crua das realidades. É de tirar o fôlego e deixar o espectador como se nocauteado, ao final de uma violenta luta de vale-tudo.

 

 

(Foto: Reprodução Instagram.)

 

    O arco dramático do texto e da personagem vai sendo construído de uma forma totalmente inesperada para o público; e genial. Durante, aproximadamente, o primeiro terço, dos 90 minutos de encenação, tudo parece fluir bem, quando a personagem se limita a lembrar, orgulhosamente, os muitos casos profissionais em que venceu, assim  como relembra momentos agradáveis e felizes, “normais”, que viveu, como as festas das quais participou e as pessoas interessantes que conheceu ao longo de sua vida, tanto na esfera de relação do trabalho quanto fora dele. De repente, não mais que de repente, o curso da narrativa toma outra direção e começa a atingir o espectador, da mesma forma como assustou a personagem, momento a partir do qual ela passa a falar de assédio e violência sexual praticados contra si própria. É como se o assistente, na plateia, estivesse dirigindo, placidamente, por uma estrada e, após uma curva, se visse, subitamente, caindo dentro de um profundo buraco, com danos quase irreparáveis para o veículo. Com mais propriedade, quase irreversíveis para quem o conduz.

  

 

   Comprovam as estatísticas que, no Brasil, um tipo de violência contra a mulher é praticado a cada 8 minutos, e as crianças são o alvo maior dos criminosos, quando se trata de violência sexual. Os números podem ser ainda maiores do que os divulgados, se considerarmos que, de cada 100 casos estimados desse tipo de violência, apenas 7 são registrados. A violência contra as mulheres, por aqui, continua a ser uma grave questão de direitos humanos, como revelam os dados do “Atlas da Violência 2024”. Esse número alarmante destaca a necessidade de providências cabais, severas e coordenadas, para proteger as mulheres e meninas no país. Isso é seriíssimo, porque as agressões sexuais foram o tipo de violência mais recorrente registrado contra, principalmente, meninas de 10 a 14 anos em nosso país (49,65%), em 2022, aponta o “Atlas”.

  

 

  Ao me deparar com a interessante cenografia de ANDRÉ CORTEZ, confesso que estranhei ver móveis empilhados, ainda que de forma harmoniosa, é verdade: mesas e cadeiras. Estranhei aquela imagem, que me pareceu insólita, mas que, certamente, seria explicada com o decorrer da peça. Eu esperava, pelo menos. Demorei bastante para entender a proposta – Fui pensando, pelo caminho de volta a casa. -, se é que a minha decodificação não possa equivaler a uma “viagem” de alguém com, digamos, uma imaginação excessiva. Como os móveis estão distribuídos em mais de um plano, penso que aquela disposição possa ter uma relação com a ideia de uma estrutura social, em que a mulher esteja representando um ser subalterno, ou inferior, em relação ao “macho alfa”, condição esta explícita na dramaturgia, embora isso não seja uma verdade. FÁBIO NAMATAME desenhou figurinos que são trocados à vista da plateia, distribuídos entre uma toga, veste que caracteriza profissionais da "Justiça", e trajes, digamos, “civis”. Outros detalhes que merecem destaque, entre os artistas criadores, é o desenho de luz, assinado por WAGNER ANTÔNIO, e a instigante e expressiva trilha sonora, de responsabilidade de MORRIS.   

 

   

 

 

FICHA TÉCNICA:

Texto: Suzie Miller

Tradução: Alexandre Tenório

Direção: Yara de Novaes


Atuação: Débora Falabella

Cenografia: André Cortez

Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Wagner Antônio
Trilha Sonora: Morris

Consultoria Jurídica: Maria Luiza Gomes e Mateus Monteiro
Assistência de Direção: Ivy Souza e Renan Ferreira
Coordenação Administrativa: Coarte
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves / Clímax Conteúdo

Fotos: Annelize Tozetto

Produção Executiva: Catarina Milani
Direção de Produção: Edson Fieschi e Luciano Borges
Realização: Borges & Fieschi Produções e Antes do Nome

 

 

 

 

 

SERVIÇO:

Temporada: De 02 de maio a 30/06 de 2024.

Local: Teatro Adolpho Bloch.

Endereço: Rua do Russel, nº 804 – Glória – Rio de Janeiro - RJ.

Dias e Horários: De 5ª feira a sábado, às 20:00; domingo, às 18:00.

Valor dos Ingressos: R$150 e R$ 75.

Duração: 90 minutos.

Classificação Etária: 12 anos.

Gênero: Drama.

 

 

 

Yara de Novaes

(Foto: Murilo Basso - Jornal "Estado de Minas".)


        Não resta a menor dúvida de que “PRIMA FACIE” é uma das melhores produções deste ano, até o presente momento, sendo mais do que uma simples peça de TEATRO para o entretenimento. É, muito mais que isso, um exemplo da ARTE a serviço das pessoas, da sociedade; um alerta, para que o discurso da defesa das mulheres não fique apenas no plano das teorias e, sim, seja posto, concretamente, em ação.


 

 

 



FOTOS: ANELIZZE TOZETTO.

 

 

 

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Um comentário:

  1. Fiquei super curiosa em assistir essa peça através da sua crítica tão bem fundamentada, Gilberto. Adoro o trabalho da Débora. Quero assistir!

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