quinta-feira, 29 de setembro de 2022

 

“A FLOR DO MEU 

BEM-QUERER”

ou

(POLÍTICA POR DEBAIXO DOS PANOS.)

ou

(POLÍTICA “À BRASILEIRA”.)

ou

(UM MARTINS PENA DO SÉCULO XXI?)


   Espero que não considerem nenhum absurdo ou “heresia” eu afirmar que Martins Pena, dramaturgo, diplomata e introdutor da COMÉDIA de costumes no Brasil, que viveu no século XIX, possa ser considerado o "Molière brasileiro", visto que sua vasta obra caracterizou, pioneiramente, com muita ironia e humor inteligente, as graças e desventuras da sociedade brasileira e de suas instituições, principalmente a Igreja Católica, e os políticos. Sem qualquer cabotinismo, posso dizer que conheço, com uma boa profundidade, a obra desse grande dramaturgo, quase 30 peças, dentre COMÉDIAS, sátiras, farsas e dramas (Nestes, era considerado “fraco”.), fruto de um excelente curso que fiz, com uma das maiores conhecedoras do seu acervo dramatúrgico, a Professora Maria José da Trindade Negrão, grande mestra, durante a minha formação em Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Martins Pena fundou uma variante da COMÉDIA, a “COMÉDIA de costumes”, nas quais retratava, como um crítico ferino, o caráter do brasileiro da época, com a maior fidedignidade. Muitas de suas peças apresentavam situações de pouca verossimilhança e coerência, porém, “ainda assim, construiu muitas passagens de grande vivacidade e situações surpreendentes e é constantemente elogiado pela espontaneidade dos diálogos e pela perspicácia no registro dos costumes brasileiros, mesmo que quase sempre satirizados”. Aprendi, com Dona Maria José, que, sem nenhum exagero, na extremíssima hipótese de que um cataclisma acabasse com a vida na Terra, mas, por um acaso, a obra de Martins Pena tivesse sido preservada, num “bunker”, se o planeta voltasse a ser habitado e esses textos fossem resgatados, seria possível se chegar a uma ideia de como era a vida, no Rio de Janeiro, a sua sociedade, apenas tomando por base os costumes retratados nas peças do consagrado autor, consideradas, por alguns, verdadeiros “tratados sociológicos”, o que considero um certo exagero.



        Mas por que essa introdução, para se escrever uma crítica sobre uma COMÉDIA, excelente, diga-se de passagem, escrita no século XXI? Simplesmente porque JUCA DE OLIVEIRA, em “A FLOR DO MEU BEM-QUERER”, parece ter bebido na mesma fonte que inspirou o Pena, ou teve este como modelo, guardadas as devidas proporções. Martins Pena, nas COMÉDIAS urbanas, costumava, com muita sátira e ironia, construir tipos maliciosos e escrever sobre temas que representavam muitos dos problemas da época, como o casamento por interesse, a carestia, a exploração do sentimento religioso, a desonestidade dos comerciantes, a corrupção das autoridades públicas, o contrabando de escravos, a exploração do país, por estrangeiros, e o autoritarismo patriarcal, manifesto tanto na escolha de profissão para os filhos quanto de marido para as filhas, por exemplo. E o que faz JUCA DE OLIVEIRA aqui?



    “A FLOR DO MEU BEM-QUERER” também é uma COMÉDIA de costumes, farta em quiprocós (Do latim “quid pro quo”, que significa “tomar uma coisa por outra” e que, em português e demais línguas latinas, tem o sentido de “confusão” ou “engano”.), a qual aborda, de forma bastante realista, as fraquezas do ser humano e os conluios de um político corrupto, além de pôr em relevo os inconcebíveis contrastes entre classes sociais, utilizando-se de jogo de intrigas, criados dentro da construção de uma magnífica carpintaria teatral, capaz de despertar e prender atenção do público, de todas as idades, provocando-lhe uma sucessão de gargalhadas, as quais geram, a meu juízo, uma fantástica catarse. Todos riem muito e deixam o Teatro Renaissence (VER SERVIÇO), se não com a alma lavada, pelo menos com o “fígado desopilado”. O “bandido” corrupto leva uma lição, mas ainda é pouco, pelo que merecia, de fato.



      A peça foi montada, pela primeira vez, em 2003 e teve temporada de muito sucesso, no antigo Teatro Cultura Artística. Quase vinte anos depois, ela volta ao cartaz, sendo que o autor do texto a reescreveu, com todas as atualizações pertinentes aos dias de hoje, pensando em “cutucar com vara curta” aqueles aos quais “cabe a carapuça”, e arrancar muitas risadas do público, o que consegue facilmente, muito embora, ainda que achemos engraçadas as piadas, as críticas e as situações de corrupção, que flutuam, no ar, durante os 80 minutos de duração do espetáculo, sabemos que o cerne de tudo aquilo se trata de um problema muito sério.





SINOPSE:

Nhô Roque (JUCA DE OLIVEIRA), casado com Dos Anjos (ROSI CAMPOS), é um colono da Fazenda Bem-Querer. Ele vive o drama da afilhada, Flor (NATALLIA RODRIGUES), que engravida do Senador Zé Otávio (LÉO STEFANINI), com poucas perspectivas de que o filho seja reconhecido pelo pai.

Fazenda Bem-Querer, de propriedade do Senador, é vendida e eles têm que sair de lá, como tantas outras famílias de colonos, por imposição da esposa do novo proprietário, o que é, em si, uma enorme tragédia. 

Dos Anjos, como mulher responsável por Flor, potencializa os problemas de Nhô Roque, porque o drama da afilhada a atinge com mais força. O despejo da fazenda é a morte para ela. 

Flor concebeu um filho, que "não terá pai", arrependeu-se e sofre a discriminação de mãe solteira, num mundo rural, ainda conservador. O que fará com o menino, sem um teto e sem qualquer trabalho para alimentá-lo? Gosta de Jacinto (JÚLIO OLIVEIRA)

Jacinto é apaixonado por Flor, mas vive o drama da aceitação. Tem medo de que a diferença de cultura entre ambos inviabilize a relação. Concebe um filho com Flor, tem a prova de que o filho é seu, mas sua insegurança o leva a vacilar e adulterar o exame de paternidade, para fugir à responsabilidade.

Senador Zé Otávio está numa campanha à Presidência da República, com sérios problemas. Com o dinheiro congelado na Suíça, tem poucas chances de realizar uma boa publicidade e, por isso, é compelido a vender a fazenda da família, para fazer caixa. Além disso, preocupa-se com a indiscrição de suas namoradas. 

Vanessa (BRUNA MIGLIORANZA), uma de suas conquistas, gasta o dinheiro que lhe resta e se constitui numa ameaça, caso o namoro venha a público. 

Tati (voz de ÂNGELA DIPPE), a secretária, é discreta, mas pode desandar.

Chico Lima (FÁBIO HERFORD), assessor de Zé Otávio, seu braço direito, estudou em Harvard, preparou-se para a vida profissional, no entanto tem de se submeter ao autoritarismo megalomaníaco de um homem insensível e corrupto. Ama Vanessa, em silêncio, já que ela vive sob a proteção financeira de Zé Otávio.

Vanessa é aviltada, na sua relação de amante do Senador, mantém um caso clandestino com Chico Lima, sem coragem para assumir, e quase morre degolada no elevador do comitê.

Enfim, todos em crise, sem nenhuma razão para o riso, para a brincadeira. Todos estão amarrados às suas ansiedades e angústias. A situação é que tudo é muito paradoxal e, portanto, muito engraçado.

 

       



  Penso que a SINOPSE supra e as informações contidas nos dois primeiros parágrafos desta crítica justificam seus três subtítulos. Também nem seria necessário dizer o quanto essa temática é atual, há três dias de uma eleição para a Presidência do país, quando a estou escrevendo, um momento tão conturbado, tenso e perigoso, fruto de uma extremas polarização polemização, quando os dois candidatos que lideram as pesquisas de votos se agridem, mutuamente, e, todos os dias, explodem escândalos de corrupção, principalmente ligados ao candidato que disputa a reeleição, e as chamadas “fake news”, um “câncer” da vida moderna. O momento não seria mais oportuno para a reencenação deste excelente texto, devidamente reescrito, com muitas pinceladas de contemporaneidade, incluindo nomes de figuras públicas da política brasileira atual, que estão presentes no dia a dia dos noticiários, em todas as mídias.



         Um detalhe que muito me chamou a atenção, no texto, que eu já conhecia, mas dele não me lembrava muito bem, detalhe este já mencionado acima, a questão dos quiprocós, é que, assim como Martins Pena, JUCA DE OLIVEIRA, com grande maestria, consegue, com eles, fazer com que a narrativa “siga num crescendo”, muito bem estruturado, situações tecidas, fio a fio, numa rica trama, capaz de prender, cada vez mais o espectador ao palco. Isso tudo é feito de uma forma leve e descontraída, com piadas que funcionam muito bem – todas elas -, e, talvez, seja o motivo maior do sucesso, de público e de crítica do espetáculo, que já fez temporada em outro Teatro de São Paulo, este ano, e continua lotando o Teatro Renaisssence, até mesmo com uma possibilidade de mais uma prorrogação da atual. Oxalá os Deuses do TEATRO o permitam!



          JUCA reúne, num mesmo palco, em dois ambientes diferentes, duas realidades díspares; ou seja, o universo sertanejo, de uma simples família caipira e o “glamour” da riqueza, associada à corrupção, representada pelo poder de um Senador da República. Há ou não total verossimilhança nisso? A solução, para essa concepção, em termos cenográficos foi muito bem encontrada. Num lado do palco, foi construída uma cozinha de uma habitação humilde, da casa de um caboclo sertanejo, o cômodo mais importante desse tipo de habitação, onde as pessoas se reúnem, em volta de um fogão a lenha, para “prosear”, com ricos detalhes de móveis, peças e objetos cênicos, num excelente trabalho de direção de arte. No lado oposto do palco, fica a sala onde funciona o comitê de campanha do Senador, da mesma forma, com detalhes bem realistas. Quase ao final da peça, este segundo espaço se transforma num prolongamento da casa do colono. O cenário é uma obra a seis mãos, assinado por LÉO STEFANINI, JANNE SAVIANI e WIL SIQUEIRA.


(Foto: Gilberto Bartholo.)


       ISABELLA OLIVEIRA desenhou figurinos bem ajustados aos personagens, deixando bem em destaque o contraste entre a maneira de se vestir dos mais simples e dos mais sofisticados.

       A iluminação, a cargo de CLEBER ELI, não apresenta nenhum detalhe que chame muito a atenção, porém faz-se necessário dizer que a luz se adéqua a cada momento da narrativa, a cada exigência das cenas.

   Há uma trilha sonora, de responsabilidade de ROBERTO LAZZARINI, que embala alguns momentos da peça de forma “redonda”, obedecendo a uma certa conveniência.



        Para encerrar estas considerações, passemos a uma avaliação do elenco da peça. O termo “avaliação” pode soar muito didático e solene, ou como se eu me considerasse o “dono da verdade”, o que faço questão de negar. Mas não se trata disso e, sim, de uma opinião que tenho sobre o trabalho de cada um ator ou atriz do elenco, muito bem encabeçado por dois dos maiores nomes do TEATRO BRASILEIRO: JUCA DE OLIVEIRA e ROSI CAMPOS. É comovente ver em ação, um homem de 87 anos, com o peso da idade, é óbvio, porém defendendo seu personagem da forma mais digna e com total competência. JUCA é um baluarte, não só do TEATRO como também da TV e do cinema. Seu currículo é extenso, como ator, diretor, dramaturgo e sei lá mais o quê. JUCA é um “HOMEM DO TEATRO”, um ator completo, que é aquele que consegue interpretar bem papéis dramáticos e cômicos. Aqui, seu personagem é o que mais utiliza seu direito à voz para "disparar sua metralhadora de ironias para todos os lados". E como o faz bem! Como lhe agradeço, pelas gargalhadas que provocou em mim!

     Com sua personagem, Dos Anjos, ROSI CAMPOS nos presenteia com um belo trabalho de interpretação, “batendo um bolão” com JUCA, comprovando, mais uma vez, em sua longa carreira de sucesso, sua vocação para pisar, com propriedade, as tábuas, ambos, ela e JUCA, demonstrando uma excelente “química”, com muita cumplicidade no palco.


(Foto Ruvin Singal.)


        LÉO STEFANINI assimilou, por meio de muita observação, é claro, tudo o que de “podre” existe na figura de um político corrupto, cafajeste, cínico, mentiroso, prevaricador, “que quer levar vantagem em tudo” e, por isso mesmo, seu trabalho de ator é excelente. Achei curioso, mas o texto contribui para isso, o fato de o público não reagir negativamente, contra o personagem. COMÉDIA explica tudo. LÉO faz com que o Senador Zé Otávio “pareça inofensivo”, como o era Odorico Paraguaçu, OBRA-PRIMA de composição de personagem do inesquecível Paulo Gracindo.



  FÁBIO HERFORD não poderia estar melhor na figura do “capacho” – até a página 5 – do Senador, compactuando com suas trapaças, acobertando-as e facilitando-as, porque lhe era conveniente, não perdendo a oportunidade de “colher as migalhas que o Senador deixa cair no chão”. Que o diga VANESSA, a personagem de BRUNA MIGLIORANZA, a amante – uma das – de Zé Otávio, com quem Chico Lima tinha um caso, às ocultas. Muito bom o trabalho de ambos: FÁBIO, pelo que já comentei, e BRUNA por vestir a pele de uma mulher consumidora, fútil, exploradora, frívola e, até certo ponto, vulgar, interessada, unicamente, nas “mordomias” que o Senador lhe proporciona, em troca de prazeres na cama.

 NATALLIA RODRIGUES encarna, muito bem, o papel da jovem do interior, criada pelos padrinhos, aparentemente ingênua, quando isso lhe é favorável, porém conhecedora dos prazeres da carne, a ponto de não saber quem era o pai de seu filho, de nome tão “exótico”: Israel Rodolfo.



Para completar o elenco, JÚLIO OLIVEIRA, um jovem e talentoso ator, cuja carreira acompanho desde seus primórdios, que entrou, na formação do atual, com muita garra e disposição. Seu Jacinto rouba a cena, com uma confidência, no final da peça, que surpreende a plateia. JÚLIO “entrou em campo aos 44 minutos e meio do segundo tempo”, e conseguiu se manter dentro do nivelamento positivo de seus colegas de cena.  



       

FICHA TÉCNICA:

Texto: Juca de Oliveira

Direção: Léo Stefanini

Diretor Assistente: Maurício Guilherme

 

Elenco: Juca de Oliveira (Nhô Roque), Rosi Campos (Dos Anjos), Léo Stefanini (Senador Zé Otávio), Fábio Herford (Chico Lima), Bruna Miglioranza (Vanessa), Natallia Rodrigues (Flor), Júlio de Oliveira: (Jacinto) e Ângela Dippe (Tati – secretária do Senador – voz em “off”) 

 

Cenário: Léo Stefanini, Janne Saviani e Wil Siqueira

Cenotécnicos: Wil Siqueira e Rafael Junqueira

Figurino: Isabella Oliveira

Iluminação: Cleber Eli

Trilha Sonora: Roberto Lazzarini

Fotografia: João Caldas Fº

Assistente de Fotografia: Andréia Machado

Assessoria de Imprensa: Agência Taga

Direção de Produção: Keila Mégda Blascke

 

 


 

(Foto: Autor desconhecido.)

 

 

SERVIÇO:

Temporada: De 06 de agosto a 30 de outubro de 2022.

Local: Teatro Renaisssence.

Endereço: Alameda Santos, nº 2233 – Jardim Paulista - São Paulo – SP. (Próximo à Biblioteca Mário de Andrade.).

Dias e Horários: Sextas-feiras, às 21h; sábados, às 19h; domingos, às 17h.

Valor dos Ingressos: Sextas-feiras e domingos = R$120,00; sábados = R$140,00.

Duração: 80 minutos.

Capacidade: 448 lugares.

Classificação Etária: 14 anos.

Gênero: COMÉDIA. 

 


(Foto: Ruvin Singal.)


      Adorei o espetáculo e o recomendo, com empenho, pelo conjunto da obra. Todos os elementos de criação são perfeitos, direção e elenco excelentes e, ainda por cima, o enorme prazer de ver atuando, repito, aos 87 anos, com seu inesgotável talento, um ator do nível de JUCA DE OLIVEIRA, esbanjando “saber teatral” e profissionalismo. Oxalá ainda possamos vê-lo, por muitos anos mais, em atividade!!! Para encerrar, devo acrescentar que fiquei muito emocionado com a homenagem, mais que merecida, que lhe foi prestada, no último dia 21, durante a cerimônia do “Prêmio Bibi Ferreira”, em São Paulo.


(foto: Ruvin Singal.)


Salve o SENHOR JUCA DE OLIVEIRA!!!



 (Foto: Ruvin Singal.)

 


FOTOS: JOÃO CALDAS Fº (Oficiais)

  

GALERIA PARTICULAR:



(Foto: Leonardo Soares Braga)

A honra e o orgulho de conhecer, pessoalmente, este ícone do TEATRO BRASILEIRO: JUCA DE OLIVEIRA.


 

E VAMOS AO TEATRO,

COM TODOS OS CUIDADOS!!!

 

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A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE!!!

 

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