O
BOCA DO INFERNO
(DAS BOAS SURPRESAS
QUE O
TEATRO
NOS PROPORCIONA.
ou
QUEM JÁ TRAZ A
“GUERRA”
NO PRÓPRIO NOME.)
Um
sábado delicioso foi o último (7/10/2017).
Primeiro, um excelente espetáculo infantojuvenil, “A História da História”, sobre o qual escreverei logo, e, no
início da noite, uma grande e agradável surpresa: “O BOCA DO INFERNO”, no aprazível Parque das Ruínas (VER SERVIÇO.).
Mas
por que “grande e agradável surpresa”?
Porque eu já sabia que se tratava de uma modestíssima produção, em termos materiais, e, infelizmente – com raras exceções
– esse tipo de espetáculo, apesar de todo o empenho de quem está envolvido no
projeto, costuma ser de qualidade duvidosa. Este “...BOCA...” é uma dessas raras exceções, uma vez que, conquanto
seja bem simples e tenha nascido de um “parto” dificílimo, sem patrocínio,
contando, apenas, com alguns apoios, a peça consegue agradar a todos os que
assistem a ela. Pelo menos, a mim e ao público que lotou o pequeno Teatro do Parque das Ruínas, na sessão
da qual tive o prazer de participar, e, pelo que tenho escutado, vem agradando a
outras plateias também. Não ouvi, até o presente momento, nenhum comentário
desabonador. A prova disso é que, depois do sucesso de uma primeira temporada,
a montagem ganhou a segunda, em curso.
Alguns
são os motivos que garantem o fato de a peça agradar tanto.
Comecemos pelo
texto, atualíssimo, embora escrito
no período do Brasil Colônia, uma
vez que aquilo escrito pelo grande poeta brasileiro GREGÓRIO DE MATOS, combatendo os desmandos e o que poderia ser
considerado “corrupção”, à época, é, exatamente, o que estamos vivendo
atualmente, neste país em que a impunidade impera, a censura grassa, a
corrupção caminha em proporções geométricas e o povo se sente impotente, para
lutar contra tantas coisas negativas e tantos bandidos, esfarrapados ou em bem
talhados ternos.
Outro
motivo seria o excelente trabalho de dramaturgia,
de ADAÍLTON MEDEIROS, que, em sua
pesquisa sobre a obra de GREGÓRIO,
conseguiu pinçar o que havia de melhor da sua obra, para costurar tudo, de forma
a mostrar que, da Colônia à (Nova?) República, nada mudou.
Mais
motivos há, como a direção e a atuação do trio de atores, que merecerão
um comentário mais detalhado, adiante.
Profundamente
corajoso, combativo e revolucionário, contra tudo o que julgava torto, GREGÓRIO já trazia a “GUERRA” no próprio nome e dela não
pensava em se afastar, até ver a justiça feita, em prol do povo, que já era
“cordeirinho”, naquela época, ou – alguns – coniventes com o que estava errado.
SINOPSE:
“O BOCA DO INFERNO” é um espetáculo baseado na vida do poeta GREGÓRIO DE MATOS (GUERRA) e se passa
no período Barroco do Brasil Colônia.
A peça trata da chegada do
poeta à Bahia - aos 47 anos, 33 deles vividos em Portugal,
onde foi educado -, até sua deportação para Angola, mostrando o conflito de um homem em decadência, como
fidalgo, e em ascensão, como poeta, desafiando a tudo e a todos, com sua língua
ferina e suas sátiras poéticas certeiras, o que lhe valeu o apelido de “BOCA DO INFERNO”.
Na ficção, além de GREGÓRIO (LICURGO), fazem-se presentes
mais dois personagens: o amigo CHICO
(GILSON DE BARROS) e a prostituta ANA
(ANDRÉA MATTAR).
Extraído do “release” da peça, enviado pela assessoria de imprensa: “Sua
(de GREGÓRIO) personalidade instável e suas contradições são uma constante na
narrativa, oscilando entre o sagrado e o profano, o sublime e o grotesco, o
amor e o pecado. Conspiração, corrupção, orgulho, vaidade, cobiça e poder
amarram os personagens de ‘O BOCA DO INFERNO’ numa trama que culminará numa
traição. Quem traiu e quem foi traído? Está aí o mistério que só o público
poderá desvendar”.
Com sua língua
sempre muito bem afiada, como uma faca, para os cortes mais profundos, os principais
alvos de suas criticas e ataques explícitos, sempre exacerbadamente satíricos,
eram os políticos da época e a Igreja, como instituição. Aí reside,
certamente, um dos grandes porquês do sucesso da peça. A plateia se sente
representada e, até certo ponto, vingada, pelo “Poeta Maldito”, quando diz, de peito nu, o que todos gostaríamos
de falar sobre os atuais políticos, em todas as esferas e de todos os partidos,
sem medo de repressão, e contra não só a Igreja
Católica, mas, principalmente, os evangélicos fundamentalistas. Aqui, faço
questão de abrir parênteses, para deixar bem claro que não me refiro aos verdadeiros cristãos, nesta ou naquela religião.
GREGÓRIO DE
MATOS GUERRA (Salvador, 1636 – Recife, 1696), mais conhecido como “Boca
do Inferno” ou “Boca de Brasa”, foi advogado e poeta do Brasil Colônia.
Sem dúvida, o mais importante
poeta satírico da literatura em língua portuguesa, no período colonial, mas
também produziu belos poemas de fundo lírico
e religioso.
O poeta nasceu numa
família abastada, de empreiteiros de obras e funcionários administrativos (Será que as críticas já
começariam dentro da própria família? Olha o momento atual aí! Piada pronta? Quem
sabe?). Assim como todos os brasileiros de sua época, ainda que nascido na Bahia, sua nacionalidade era portuguesa, pois o Brasil só
se tornaria independente no século XIX. Todos os cidadãos nascidos antes da
independência eram luso-brasileiros.
Com 14 anos, foi para Portugal, país que lhe deu sua educação, tendo ingressado na Universidade de Coimbra, onde estudou Direito.
Em 1663, foi nomeado juiz de fora de Alcácer do
Sal.
Em 27 de janeiro de 1668, representou
a Bahia nas Cortes de Lisboa.
Em 1672, o Senado da Câmara da
Bahia outorgou-lhe o cargo de procurador.
A 20 de janeiro de 1674 foi, novamente,
representante da Bahia nas cortes.
Foi, contudo, destituído do cargo de procurador.
Voltou de Portugal, em 1679 (ou 1681 – há controvérsias),
nomeado pelo arcebispo Gaspar Barata de Mendonça, Desembargador da
Relação Eclesiástica da Bahia,
embora não fosse padre e levasse uma vida boêmia, quase mundana.
Em 1682, D. Pedro II,
Rei de Portugal, nomeou-o como Tesoureiro-Mor da Sé, um ano depois de
ter exercido outras importantes funções administrativas. Talvez, ou quase com
certeza, tivessem sido tentativas de fazê-lo calar, suavizar seus versos
críticos, já que, ainda em Portugal,
já ganhara a reputação de poeta satírico e improvisador. Sua língua ferina, virulenta,
era uma metralhadora, atirando em todas as direções. Criou, por isso, terríveis
inimigos, embora contasse com a proteção, a princípio, do Padre Vieira, de reputação ilibada.
Foi destituído dos
cargos pelo novo arcebispo, Frei João da Madre de Deus, por sua
rebeldia: recusava-se a usar batina e, também, não aceitava a imposição das ordens
maiores, de forma a estar apto para as funções a que tinha sido incumbido.
Começou, então, a
satirizar os costumes do povo de todas as classes sociais baianas, as quais
passou a chamar de "canalha
infernal", ou aos nobres, aos quais apelidara de "caramurus". Sua poesia
se tornou, predominantemente, mais corrosiva e erótica,
quase, ou mesmo, pornográfica.
Em 1685, o promotor eclesiástico da
Bahia denunciou os seus costumes livres ao Tribunal da Inquisição.
Ele foi acusado, por exemplo, de "difamar Jesus Cristo e de não mostrar
reverência, tirando o barrete da cabeça, ao passar por uma procissão".
Era mesmo “da pá virada”, o rapaz, como se dizia antigamente. A acusação não
teve seguimento, entretanto, as inimizades cresceram, em relação direta com
os poemas que
escrevia.
Em 1694, por suas críticas às autoridades
da Bahia, com acusações vindas de vários
lados, dos políticos e dos religiosos, e correndo o risco de ser assassinado,
acabou sendo deportado para Angola,
de onde voltou em 1695, como
recompensa por ter ajudado o governo local a combater uma conspiração militar, com
a condição de não ir para a Bahia.
Foi, então, viver em Recife, Pernambuco, onde continua sua vida,
embora proibido de fazer versos, tal era o temor de suas sátiras ferinas. Faleceu
arrependido e reconciliado com a igreja. Na hora da morte, causada por uma
febre, contraída na África, compôs
um pequeno soneto:
“Essa razão me obriga a confiar,
Que por mais que pequei, neste
conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.”
Foi
considerado o primeiro “poeta maldito”
brasileiro e há quem diga que “as primeiras representações da
homossexualidade, na literatura brasileira, das quais se tem conhecimento estão
em alguns poemas satíricos de GREGÓRIO DE MATOS”.
Apesar
de ter deixado uma vasta obra, não teve nenhum livro publicado em vida. São
todas publicações “post mortem”.
Numa
montagem modesta, em geral, os elementos
técnicos são bem franciscanos, como acontece com este “...BOCA...”, entretanto são “detalhes”
que não fazem muita falta, para que o público veja um ótimo espetáculo.
Os
figurinos não são originais, porém
atendem, perfeitamente, à proposta do projeto. Vieram do acervo da competentíssima
figurinista CAROL LOBATO, garimpados por JANAÍNA
WENDLING.
O
cenário e a iluminação ficaram sob a responsabilidade de PAULO DENIZOT. O cenário
se resume a apenas uma mesa de bar, de ferro, dobrável, e meia dúzia de cadeias pretas,
de um tipo de plástico, que mudam de posição, constantemente, dando um bom
resultado, em termos de dinâmica. Ao fundo, uma tela, para as projeções, no
centro, e dois ou três pequenos painéis, com esculturas de corpos humanos nus,
masculinos e femininos, em alto-relevo. De longe, pareceram-me confeccionadas
em fibra de vidro. Tudo puxado para o bege.
A
luz é bem variada, acompanhando o deslocamento
dos atores em cena, já que ocupam, por vezes, parte da plateia. Por oportuno, é
bom esse deslocamento e tudo o que fazem em cena, em termos cinéticos, graças
ao trabalho de direção de movimento.
Leia-se: VIRGÍNIA MARIA.
Igualmente
interessante é o visagismo, assinado
por DIEGO NARDES.
A
direção do espetáculo é de LICURGO, que também atua. Num trabalho,
certamente, muito estreito, com o autor
da peça, a direção chegou a soluções
bem simples, porém interessantes, e achei muito boa e oportuna a utilização de
vídeos que mostram manifestações contra os atuais governantes. Uma delas tem
como fundo musical uma canção de Caetano
Veloso (melodia), cantada por este, da qual muito gosto, cuja letra é do “BOCA DO INFERNO”. Trata-se de “Triste Bahia”, que Caetano interpreta como um lamento,
tirando sons pungentes de sua garganta, tendo muito a ver com a letra e, no
caso, com o momento político atual. Como a gravação é muito longa, foi editada
e apenas um trecho é executado. Uma pena!!!:
TRISTE BAHIA
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante
Triste, oh, quão dessemelhante, triste
(...)
(...)
A direção também foi muito feliz na
montagem da última cena, na qual gestos e silêncios dos atores/personagens falam e expressam mais que muitas palavras,
principalmente quando a cena tem, ao fundo, a fantástica canção (na íntegra) “Mortal Loucura”, poema de GREGÓRIO, musicado por Zé Miguel Wisnik:
MORTAL LOUCURA
Na oração, que desaterra... a terra
Quer Deus que a quem está o cuidado... dado
Pregue que a vida é emprestado... estado
Mistérios mil que desenterra... enterra
Quem não cuida de si, que é terra... erra
Que o alto Rei, por afamado... amado
É quem lhe assiste ao desvelado... lado
Da morte ao ar não desaferra... aferra
Quem do mundo a mortal loucura... cura
A vontade de Deus sagrada... agrada
Firmar-lhe a vida em atadura... dura
Ó voz zelosa, que dobrada... brada
Já sei que a flor da formosura... usura
Será no fim dessa jornada... nada
Convém acrescentar que as duas canções, além
de belíssimas, receberam, em ambas as gravações, arranjos impecáveis.
Infelizmente, ficarei devendo os nomes de seus autores. Recomendo que as ouçam (YOUTUBE).
Finalmente, os
comentários sobre o elenco.
Não precisarei
de muitas palavras para enaltecer o trabalho do trio, cada um totalmente
vestido de seu personagem.
Os destaques maiores
vão para LICURGO e GILSON DE BARROS, pela importância maior
de seus personagens na peça.
Aquele encarna
um GREGÓRIO totalmente diferente do
que eu imaginava, ainda que suas características físicas se assemelhem. Do
ponto de vista da personalidade amoral – pode-se até dizer - do protagonista, o
ator desenvolve um trabalho que não deixa dúvidas quanto ao caráter e comportamento
do personagem fora da ficção. Muito seguro e convincente no papel.
Já este é
responsável por uma composição de personagem magnífica. Comovente é sua atuação!
GILSON jogou-se, por inteiro, no
personagem e é responsável por alguns dos grandes momentos desta montagem.
Mais como personagem coadjuvante (insisto sempre
em dizer que “coadjuvante” é o/a personagem,
e não o/a ator/atriz), ANDRÉA MATTAR,
na pele de ANA, dá um excelente
suporte aos dois atores, com uma boa interpretação e uma bela presença em cena.
Um perfeito contraponto com os dois.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Adaílton Medeiros
Direção: Licurgo
Elenco: Licurgo, Gilson de Barros e Andréa Mattar
Direção de Movimento: Virgínia Maria
Figurinos: Janaína Wendling (Acervo Carol Lobato)
Iluminação: Paulo Denizot
Cenário: Paulo Denizot
Operador de Luz: Denilson Batalha
Operador de Som: Jonatan Oliveira
Programação Visual: Guilherme Rocha
Visagismo: Diego Nardes
Assistente de Visagismo: Lucas Souza
Fotos: Lucas Souza, Rita Aragão e Kevin Kretzu
Assessoria de Imprensa: Júlio Luz Produção, Adriana Lemos e Fernanda
Nicolis
Contatos: Adriana Lemos - 98182-1441; Fernanda Nicollis - 98072-6677
SERVIÇO:
Temporada: De 1º a 29 de outubro de 2017.
Local: Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas.
Endereço: Rua Murtinho Nobre, 169 – Santa Teresa – Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 2215-0621.
Dias e Horários: sábados e domingos, às 19h30min.
Horário de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a domingo, a partir
de 14h.
Valor dos Ingressos (pagamento somente em espécie): R$ 30,00 (inteira),
R$15,00 (meia entrada) e R$10,00 (lista amiga – colocando o nome no evento do Facebook ). PROFESSORES DA REDE PÚBLICA E ESTADUAL
NÃO PAGAM.
Classificação Etária: 16 anos.
Duração: 60m.
Surpresas
só têm valor se forem boas. Que eu tenha, sempre que for ao TEATRO, sem uma expectativa tão grande,
excelentes surpresas como a que representou, para mim, o espetáculo “O BOCA DO INFERNO”, o qual recomendo
bastante, como divertimento e pontapé inicial para algumas necessárias
reflexões acerca do porquê de estarmos passando pelo triste momento político,
de trevas, em está mergulhado o Brasil.
Talvez possamos reverter o quadro, se nos tornarmos, também, um pouco “BOCA DO INFERNO”.
(FOTOS: LUCAS SOUZA,
RITA ARAGÃO
e KEVIN KRETZU.)
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