TOM
NA FAZENDA
(UMA OBRA-PRIMA,
PARA SER APLAUDIDA DE PÉ
E COM MUTOS GRITOS DE “BRAVO!”.)
Banalizaram,
por completo, o aplauso de pé e os gritos de “BRAVO!”, entretanto quem for assistir ao espetáculo “TOM NA FAZENDA” (“TOM À LA FARME”), em
cartaz na minúscula sala do Teatro OI
Futuro Flamengo, até o dia 14 de
maio, se o fizer, será um ato consciente, quase uma obrigação, uma vez que
considero a peça uma obra-prima e um dos quatro melhores espetáculos que
estrearam no Rio de Janeiro, neste ano de 2017.
Trata-se de um
texto premiado, denso e lindo, do dramaturgo canadense MICHEL MARC
BOUCHARD, que esteve entre nós, para a
estreia da peça, autor, pela
primeira vez, encenado no Brasil,
com direção de RODRIGO PORTELLA, numa
iniciativa de ARMANDO BABAIOFF, que adquiriu
os direitos de encenação em nosso país e que também assina a tradução do texto, além de ser o protagonista da história, TOM, muito bem acompanhado, em cena,
por KELZY ECARD (ÁGATHA), CAMILA NHARY (SARA) e GUSTAVO VAZ (FRANCIS).
A feliz produção
é fruto de uma parceria entre os sócios e amigos ARMANDO BABBAIOFF e GUSTAVO
VAZ.
A peça também existe em versão cinematográfica, que foi o
estopim para que BABAIOFF se interessasse
por traduzir e montar o espetáculo, “que aborda a inabilidade do indivíduo,
para lidar com o preconceito, a impotência, a violência e o fracasso”,
de acordo com o “release” da peça. Preconceito contra os homossexuais; impotência de lutar contra o
naturalmente estabelecido; violência,
para defender valores indefensáveis; fracasso
de não poder viver uma vida desejada.
O texto, já
traduzido e montado em vários países, teve sua estreia mundial em 2011, em Montreal, no Canadá.
De acordo com BABAIOFF,
“Ele
(MICHEL MARC) parte da sexualidade, para falar, de maneira ampla, sobre as
relações humanas.”. Mas não resta a menor dúvida de que MICHEL foi extremamente perspicaz, ao
buscar uma temática que precisa, cada vez mais, ser discutida, em nome da paz e
da sanidade mental entre os seres humanos.
Não é possível que o panorama, em relação à homossexualidade, continue sendo o
horror que vivemos todos os dias, no mundo inteiro. Vejamos o que diz BABAIOFF: “No
ano em que traduzi a peça, 347 pessoas foram assassinadas (Está falando de Brasil.), pelo simples fato de serem quem
eram. O Brasil é o país que mais mata homossexuais no mundo, mais do que nos 13
países do Oriente e da África, onde há pena de morte aos LGBT. ‘TOM NA FAZENDA’
caiu nos meus braços como uma folha seca, quando se desprende de uma árvore e
você não sabe muito bem o porquê, mas estende o braço, para pegá-la, antes de
tocar no chão". Linda declaração e, mais ainda, a imagem
metafórica, recheada de sensibilidade e emoção, traduzidas, em cena, pelo excelente quarteto de atores.
Vivemos um sério e triste momento em que, aparentemente, a
sociedade (Estou falando em termos de Brasil, especificamente.) aceita e abraça
a causa “gay”, demonstra uma
simpatia e aceitação pela diversidade
sexual, mas a coisa funciona, mais ou menos, como a questão do racismo
entre nós. Se perguntarmos a cem pessoas se são racistas, ninguém haverá de se
acusar. Se perguntado, às mesmas pessoas, se há racismo no Brasil, a quase
totalidade responderá afirmativamente. Difícil entender essa conta e esse
paradoxo.
Com relação à tolerância aos “gays”, incluindo todos os tipos de, o discurso está na ponta da língua,
bem ensaiado, favoravelmente a eles, mas, embora o panorama tenha se modificado
bastante, ainda sentimos que um casal homossexual, trocando leves carícias em
público ou, simplesmente, de mãos dadas, ainda incomoda muita gente, incapaz de
compreender que amor e afeto independem de tudo e de todos. Existem para
aproximar seres humanos, para fazê-los completos e felizes.
Felizmente, o assunto, ultimamente, está presente em
várias produções teatrais, na grande maioria, tratado com seriedade e respeito,
sem levantar bandeiras, mas chamando a
atenção do público para a sua relevância, como ocorre neste espetáculo.
“Todo redemoinho, que devastará a vida dos
que fogem das normas, surge no núcleo de suas próprias famílias", é o que diz RODRIGO
PORTELLA. A verdade é que a mentalidade homofóbica começa dentro dos
próprios lares. E continua: "BOUCHARD compôs uma obra de estrutura
impecável. Ele vai fundo nas contradições dos seus personagens, o que os torna
muito próximos de nós".
Na verdade, o que propõe o dramaturgo é pintar, com todas as
tintas, o comportamento dos quatro personagens, cada um na retaguarda, na
defesa de seus interesses, no desejo da verdade, por parte de TOM, e da mentira covarde, por parte de
seu grande opositor, FRANCIS, em
nome de uma hipócrita “proteção”. ÁGATHA,
a mãe, custa-me crer que também esteja sendo sincera, na sua “ingenuidade”. Um “fingir
que não sabe” sempre pode funcionar como um remédio para o alívio de uma dor
maior. Talvez não fosse o comportamento arredio – mais que isso, agressivo - do
filho vivo, ela pudesse aceitar o morto como ele, realmente, era. Fiquei com
essa impressão.
Cada personagem vive dos seus conflitos internos e respectivas
idiossincrasias, todos, porém, lançados na mesa do jogo, na expectativa de que
a sorte os beneficie.
BOUCHARD brinca com o sério, na medida em que constrói seus diálogos, plenos de ironia e sarcasmo,
jogando com a dualidade entre o ser e o parecer ser, entre o ser "macho" ou não. “As aparências enganam aos que
odeiam e aos que amam”, já diziam Tunai
e Sérgio Natureza, numa conhecida
canção.
Tenho certeza de que este texto é um dos melhores encenados nos últimos tempos. Dos textos teatrais contemporâneos, é, sem
sombra de dúvidas, um dos mais impactantes que conheci. Uma obra-prima. Um “soco”, dos mais violentos, na boca do estômago.
Algo que faz refletir e que atrapalhou o meu sono naquela noite.
Sobre a direção,
de RODRIGO PORTELLA, só posso tecer
os maiores elogios, dizendo que ele ratifica sua genialidade, já tantas vezes
demonstrada, com várias indicações a prêmios e algumas concretizadas.
Inteligente e sensível, RODRIGO percebeu que a concepção do espetáculo dependia muito mais
do texto e da atuação do elenco e nisso se concentrou, sem se importar
demasiadamente com os demais elementos que entram numa montagem teatral, ainda
que estes (cenário, figurino, iluminação
e trilha sonora) sejam importantíssimos, nesta construção, e sobre os quais
falarei adiante.
O diretor,
cônscio do magnífico material humano que tinha nas mãos e da força do texto de BOUCHARD, traçou uma linha de utilizar poucos recursos cênicos,
concentrando nas falas e ações o potencial emotivo do espetáculo. Fã, ardoroso,
de seu trabalho, acho que esta montagem se inclui num dos seus maiores
sucessos, como profissional, se não for o melhor.
E que elenco! É motivo de imenso orgulho para a classe e o
brasileiro, de uma forma geral.
ARMANDO
BABAIOFF interpreta um TOM – perdoem-me o pueril trocadilho –
no tom exato, na medida certa das reações que viveria o personagem, fora da
ficção. Jovem, bonito, discreto, na casa dos vinte e poucos anos; um homem
urbano, muito bem-sucedido, profissionalmente; publicitário; sofisticado,
mas sem afetações. Namorava o falecido, cujo nome não é revelado durante a
peça, salvo engano.
Em nome de um verdadeiro amor, quando vai prestar uma homenagem ao
amante morto, também está, ao mesmo tempo, querendo saber um pouco mais sobre
as origens de seu amado. Vai à fazenda, com a intenção de prestar solidariedade à família,
mas é brutalmente agredido por FRANCIS,
em tese, o único sabedor da vida particular do falecido, com a qual, evidentemente,
do alto do seu preconceito, não concordava; mais que isso, não aceitava. TOM se submete a um jogo perverso do “cunhado”
e vai se transformando, adaptando-se à rudeza daquele dia a dia.
Há um detalhe, que talvez poucos possam perceber, mas, ao chegar à
fazenda, TOM está vestido num belo e
muito bem talhado terno e vai, aos poucos, trocando o figurino por andrajos, trajes que vestem os locais, além de se
emporcalhar, na lida com o gado. Essa metamorfose física é um reflexo da
transformação interior do personagem, uma metáfora do turbilhão por que estava passando naquele momento.
O trabalho do ator, para mim, o
melhor, dos seus vários, a que já assisti, é irretocável e digno de premiações.
GUSTAVO
VAZ, outro que não me surpreenderá, se
conquistar prêmios, por sua atuação nesta peça, interpreta o irmão vivo, FRANCIS, o que conduz a fazenda, um
pouco mais velho que TOM,
extremamente preconceituoso, violento e solitário. Esta última característica
talvez explique, e até justifique, um pouco, as outras.
GUSTAVO faz
um contraponto com BABAIOFF e é responsável por alguns dos
melhores momentos do espetáculo.
O personagem coloca-se
na posição de guardião, de zelador da ignorância da mãe, quanto à vida particular
do irmão morto, no firme propósito, que não deixa de ser louvável, de poupá-la
de maiores sofrimentos, e, em nome disso, revela-se cruel, perverso, para com o
namorado do irmão, a ponto de torturá-lo, física e psicologicamente, para
preservar o grande segredo. Chegava a obrigar o irmão a enviar cartas, para a
mãe, falando de uma suposta namorada, que não falava o nosso idioma, bem
bonita, de preferência, acompanhada de fotos desta. A que ponto chega seu
preconceito doentio!!!
É o vilão, capaz, até, de angariar a simpatia
do público, em determinados momentos, por demonstrar, no fundo, no fundo, uma
fragilidade e uma possível instabilidade emocional, quanto à sua própria
sexualidade.
Que grande e lindo trabalho de
ator!
KELZY ECARD, ÁGATHA, a mãe, dispensa qualquer
comentário. Já não é mais capaz de me surpreender. Nesta peça, ela só faz com
que eu me torne, cada vez mais, seu admirador, numa atuação irretocável.
É uma fazendeira, muito religiosa (aí estaria um dos grandes temores, de
FRANCIS, de que ela pudesse deixar
de ser “enganada”), e muito afetuosa. Recebe TOM, o “amigo” do filho morto, com a fidalguia de uma boa anfitriã,
a despeito de seu jeito rude de camponesa.
KELZY valoriza o espetáculo
em cada uma de suas cenas, dosando os sentimentos e ratificando seu grande
potencial de interpretação, que a coloca no meu rol das atrizes preferidas no Teatro Brasileiro.
CAMILA NHARY (SARA), estilista e colega de trabalho
de TOM, surge, na trama, quando já nem nos lembrávamos de um quarto
personagem na história. Ela vai entrar na trama, nas cenas finais da peça, como
uma namorada fictícia do falecido, para chancelar a grande farsa, como a grande
salvação da honra do morto. Do quarteto, é a que demonstra um pouco mais de equilíbrio emocional, meio de fora do conflito, pronta a cumprir seu
papel na grande mentira. Apesar de sua personagem aparecer menos em cena,
também tem uma atuação digna de elogios.
Com relação ao cenário, da
premiadíssima AURORA DOS CAMPOS,
acho que, em poucas vezes, percebi uma interação tão profunda e perfeita entre cenografia e direção. Com poucos elementos físicos em cena, tudo é sugerido,
partindo da utilização desses parcos elementos, como uma imensa lona
impermeável, que KELZY e GUSTAVO abrem, para forrar o palco, à
vista do público, quando este adentra o auditório, e muitos baldes, que contêm
uma mistura viscosa, de água e barro, ao que parece, que vai sendo derramada,
aos poucos, sobre a lona, representando uma deterioração e uma decadência, cada
vez maior, daquele espaço e, ao mesmo tempo, moral, com relação aos
personagens, que vão se emporcalhando, paulatinamente, ao longo de quase duas
horas de espetáculo.
A luz, de TOMÁS RIBAS, é um
outro grande atrativo da peça, pondo em destaque tudo o que deve ser
evidenciado e tornado quase imperceptível o que dever permanecer em função
críptica (oculto).
BRUNO
PERLATTO, mais uma vez, confirma seu
talento, criando figurinos que
atendem às necessidades do texto, em
tons pastéis, pálidos, descoloridos, confundindo-se com a cor da terra.
A peça ganha um brilho especial com a
excelente trilha sonora, a cargo do
sempre competente MARCELO H.
O
espetáculo é muito tenso, pela arquitetura do texto e pela execução das cenas violentas, de lutas, muito bem coreografadas, por TONI RODRIGUES, apoiado no ótimo
trabalho de preparação corporal,
executado por LU BRITES.
Achei
extremamente interessante o momento em que o autor nos prega uma peça, quando,
numa certa situação, após tantas lutas físicas e psicológicas, entre TOM e FRANCIS, os dois parecem que chegariam a um entendimento, por meio
de um novo romance. A cena, belíssima, me envolveu de tal forma, que, com o
diminuir da luz, senti vontade de aplaudir, pensando estar ali o final da história,
a resolução do conflito: TOM
conseguira substituir o amor do falecido pelo de seu irmão, e este, na verdade,
teria descoberto a sua verdadeira sexualidade, escancarando a porta do armário.
De forma muito inteligente, como é todo o texto,
o autor propõe mais conflitos e um outro final, com a chegada de SARA.
SINOPSE:
Na
história, após a morte do seu amado companheiro, o publicitário TOM (ARMANDO BABAIOFF) vai à fazenda da
família, para o funeral.
Ao
chegar, ele descobre que a sogra, ÁGATHA
(KELZY ECARD) nunca tinha ouvido falar dele e tampouco sabia que o filho
era “gay”.
Nesse
ambiente rural austero, TOM é
envolvido numa trama de mentiras, criada pelo truculento irmão do falecido, FRANCIS (GUSTAVO VAZ), estabelecendo,
com aquela família, relações de complicada dependência.
O
rapaz sente-se encurralado por FRANCIS
e é obrigado, pelo ódio
deste e pela cultura homofóbica, reinante na família, a se passar por um “amigo
do trabalho”.
TOM hospeda-se na fazenda e tenta se adaptar
àquele “modus vivendi”, totalmente oposto ao seu, para “sentir a presença” de
seu amado, porém o tratamento de choque, que lhe impõe FRANCIS será o gerador
de incomensuráveis conflitos.
A
fazenda, aos poucos, vira cenário de um jogo perigoso, onde quanto mais os
personagens se aproximam, maior a sombra de suas contradições, culminando com a
chegada da falsa namorada do morto, SARA
(CAMILA NHARY).
A
peça conta uma história bastante comum entre jovens de várias gerações, mesmo
de culturas diferentes.
No
Canadá, no Brasil, no Oriente Médio, no Japão ou na África do Sul, homens e
mulheres jovens aprendem a mentir, antes mesmo de aprenderem a amar. As
famílias, guardiãs das normas sobre a sexualidade, garantindo sempre a “heteronormatividade”, inserem, nos próprios
membros, a semente da homofobia.
“TOM
NA FAZENDA” é um espetáculo a que se assiste num total estado de tensão,
não só pelo “climão” que se dá, com a chegada de TOM à fazenda, como também pela iminência da explosão de uma grande
“bomba”, com efeito devastador, que nos leva a imaginar os personagens sentados
sobre um grande barril de pólvora.
Este espetáculo TEM DE SER VISTO POR QUEM AMA TEATRO DE
MELHOR QUALIDADE.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Michel Marc Bouchard
Tradução: Armando Babaioff
Direção: Rodrigo Portella
Elenco:
Armando Babaioff - TOM
Kelzy Ecard - ÁGATHA
Gustavo Vaz - FRANCIS
Camila Nhary - SARA
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Figurino: Bruno Perlatto
Concepção Sonora e Direção Musical: Marcello H.
Guitarra e Violões: JR Tostoi
Preparação Corporal: Lu Brites
Coreografia: Toni Rodrigues
Hair Stylist: Ezequiel Blanc
Fotografia: José Limongi, Renato Mangolin e Ricardo Brajtman
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Direção de Produção: Sérgio Saboya
Produção Executiva: Milena Monteiro
Assistente de Produção: Pri Helena
Produção: Galharufa Produções
Idealização: ABGV Produções Artísticas
SERVIÇO:
Temporada: Até 14 de maio de
2017.
Local: Oi Futuro Flamengo.
Endereço: Rua Dois de Dezembro, 63 –
Flamengo – Rio de Janeiro.
Informações: (21) 3131-3060.
Dias e horários: De 5ª feira a domingo, às
20h.
Capacidade: 63 lugares.
Duração: 110 minutos.
Classificação Indicativa: 18 anos.
Gênero: Drama.
Valor dos Ingressos: R$30,00 (inteira) e
R$15,00 (meia).
Horários de Funcionamento da bilheteria: De 3ª a 6ª feira, das 14h às 20h; sábados, domingos e feriados, das 13h
às 20h.
É
possível que, no decorrer desta minha crítica,
eu não tenha conseguido encontrar a adjetivação perfeita, para tudo o que há de
melhor nesta peça, mas é que precisariam criar adjetivos novos, para expressar
quão TUDO DE MAGNÍFICO ela representou para mim.
Não
vejo a hora de chegar amanhã,
dia 9 de abril, quando terei o imenso prazer de assistir a ela novamente.
(FOTOS: JOSÉ LIMONGI,
RENATO MANGOLIN
e
RICARDO BRAJTEMAN.)
GALERIA PARTICULAR - FOTOS: MARISA SÁ:
Com Rodrigo Portella (Foto: Cristina Lacerda.)
Certamento assistirei ao espetáculo. Mas não posso deixar de dizer que um espetáculo à parte é a sua crítica, Gilberto: íntegra, detalhista, fundamentada, sensível. Obrigada pelo conjunto de aspectos (acho que não ficou nada de fora) e pelo seu posicionamento claro perante a obra, forma e conteúdo. Depois eu conto o que achei! Obrigada e até nosso próximo encontro em algum espetáculo.
ResponderExcluirCarlinda.