MARCO
ZERO
(A
RESPOSTA DE UM ARTISTA
AO
TERRORISMO E À TRAGÉDIA.)
É
impressionante como um artista consegue, partindo de um fato que abalou,
profundamente, a humanidade e deixou marcas indeléveis na vida de milhares e
milhares de pessoas, acionar o seu potencial criativo, para escrever uma peça,
uma obra de arte, com tanta originalidade e atingindo, em cheio, um público,
ávido de boas histórias, e bem contadas.
NEIL LABUTE é o nome desse artista, um importante
e conceituado dramaturgo, roteirista e cineasta norte-americano, de 52 anos,
tantas vezes premiado, no cinema e no TEATRO,
já bastante conhecido dos amantes do bom TEATRO,
no Brasil, onde já teve alguns de seus textos montados, como “Restos”, “Baque”, “Gorda”, “Aquelas Mulheres”, “A Forma das
Coisas” e “Razões para ser bonita”. O ofício de dramaturgo precede o de cineasta.
Diante do caos.
Seus
personagens, via de regra, são cínicos e, até mesmo, cruéis, fiéis ao lado feio
da natureza humana, segundo alguns estudiosos de seu trabalho, e o casal desta
peça não é diferente de outros de sua galeria. Abordando esse lado torto do ser
humano, LABUTE se arvora a viver o
papel de uma espécie de juiz da humanidade. Quanto a esse aspecto, pode-se
observar uma estreita semelhança entre os seus textos e os de David Mamet, outro gênio da dramaturgia
norte-americana e ferrenho crítico da “humanidade”, em cuja fonte LABUTE parece ter bebido.
Não se trata
de moralismo ou falso moralismo; é, apenas, uma questão de pintar o ser humano
com todas as cores, das mais alegres e coloridas às mais fechadas e tristes,
com realce para estas.
“MARCO
ZERO” é um texto inédito, no Brasil, e, pela primeira vez, traduzido para a
língua portuguesa, por GUSTAVO KLEIN,
que, já há algum tempo, vem se dedicando a fazer excelentes traduções e versões
de textos de TEATRO.
Tárik Puggina e
Letícia Isnard.
O título original da peça é “The Mercy Seat”, que pode apresentar várias traduções, todas elas dizendo
muito pouco do que trata a trama. Talvez a mais literal seria “Confessionário” ou “Banco de Misericórdia”. Os dicionários
também registram “Propiciatório”, querendo
dizer "o lugar onde a propiciação é
feita".
“Propiciação”
significa “apaziguar ou aplacar a ira de
alguém”. Pelos elementos estruturais do vocábulo “propiciatório”, entende-se que é “o lugar (-tório) propício a”. A quê?
A escolha livre do título, “MARCO ZERO” foi um verdadeiro “achado”, pois, no contexto, a
expressão é metafórica e, por isso mesmo, ambígua, remetendo a algumas
simbologias: é como ficou conhecido o local onde, antes, se localizavam, em New York, as Torres Gêmeas, simbolizando a superação americana. É o momento da
vida pessoal no qual cada personagem se encontra; afinal, suas vidas estão em
vias de tomar um novo rumo. Também é o “marco
zero” da relação do casal, que é passada a limpo, às vistas de uma plateia.
É
bom lembrar que a expressão “marco zero”,
ao pé da letra, significa, com relação a uma cidade, o seu “centro geográfico, a
partir do qual todas as medições de distância relativas a ela são estabelecidas”.
Além disso, frequentemente, essa referência marca o local onde a cidade teve
origem. Em suma, sempre há uma ligação com a “origem”, o “gênesis” de
alguma coisa, o ponto inicial, onde tudo (?) começou, ou pode começar.
Antes do 11 de setembro?
Depois do 11 de setembro.
SINOPSE:
A peça, escrita em 2002, foi uma das primeiras respostas artísticas ao ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center (WTC), em 11 de setembro de 2001, dia em que o espetáculo se desenrola, tendo o trágico episódio como pano de fundo da trama. Na verdade, o diálogo entre o casal se dá na madrugada do dia 12 de setembro, menos de 24h após a tragédia que abalou o mundo. Toda a ação se dá num apartamento, com vista para o famoso duplo arranha-céu.
BEN
HARCOURT (TÁRIK PUGGINA) trabalha próximo ao WTC,
ou no próprio (ficou meio confuso, para mim – não captei bem - este detalhe,
mas isso não faz a menor diferença), mas falta ao trabalho, no dia da tragédia,
porque está mantendo relações sexuais, com sua amante, no apartamento desta, ABBY PRESCOTT (LETÍCIA ISNARD), que é
também sua chefe e mora a uma pequena distância do WTC. Salvou-se, portanto, da morte.
Na televisão, imagens do dia caótico
dominam todos os canais. O telefone de BEN
não para de tocar, e ele não consegue se decidir se atende ou não à chamada de
sua esposa.
Sem tirar os olhos da tela da TV, vai
articulando um plano sinistro de se passar por morto, na tragédia, e fugir, na
companhia da amante, para uma nova vida, a partir de um “marco zero”.
Ele se vale dos efeitos do ataque
terrorista, como uma oportunidade para começar uma nova vida com sua amante e
para fazer sua esposa e filhos acreditarem que ele morreu, como um herói, nos
ataques às Torres Gêmeas.
Em um momento de tragédia internacional,
o mundo muda em uma simples manhã. Um homem e uma mulher exploram as opções,
agora, disponíveis para eles, em uma existência diferente da que eles tinham
vivido no dia anterior.
É possível ser oportunista em um momento
de altruísmo universal? O mundo pede a misericórdia dos terroristas e ambos
buscam a misericórdia e a compaixão um do outro.
Aparente calma.
“Segundo o próprio autor, que pensou no texto, logo após a tragédia do 11 de setembro, quando teve seu voo, de Chicago para Nova York, cancelado e teve que fazer uma viagem de trem, que durou 21 horas, ele queria ‘examinar o marco zero de nossas vidas’, aquele buraco em nós, que tentamos tapar, com roupas da GAP, com colônia Ralph Lauren, com bolsas da Kate Spade. Por que estamos tão dispostos a correr cem quilômetros, para fugir de, simplesmente, dizer a alguém, ‘eu não sei se te amo mais’? Porque Nikes são baratos, correr é fácil, e honestidade é a moeda mais dura e fria do planeta.”. (Extraído do excelente “release” – um dos melhores que recebi até hoje -, enviado pela assessoria de imprensa – Daniella Cavalcanti).
“De acordo com
TÁRIK PUGGINA, que descobriu esse
texto, ao acaso, e cuja ironia crítica de LABUTE
sobre os próprios americanos e sua cultura individualista e consumista, que tão
bem poderia retratar a realidade brasileira, despertou seu interesse em fazer
essa montagem aqui, NEIL retrata
personagens amorais, que destorcem a realidade, para atingir seus próprios
objetivos. ‘Como ator, eu me questiono até que ponto somos capazes de ir, em busca
de nossos objetivos de vida, de nossos sonhos? Até onde vale a pena trilhar?
Quais os limites do personagem? E os meus? O que será que me faria mais feliz:
um imenso sucesso profissional ou uma casa simples, à beira-mar, em algum lugar
escondido desse grande caos 'des-civilizatório' que vivemos nas grandes
cidades?’”. (Idem)
“‘MARCO ZERO’ traz-se a discussão sobre
um egoísmo latente, mesmo em uma
situação que deveria ser de altruísmo mundial. No meio de uma ameaça de guerra
iminente, os personagens entram em uma discussão acalorada sobre seu
relacionamento amoroso”. (Ibidem)
Ben e Abby.
Em “MARCO ZERO”, NEIL LABUTE
“questiona o ‘momento oportuno’,
aquele quando, definitivamente, se pode decidir sobre um novo rumo para a
vida. Diálogos entre os sexos, sobre quem tem o poder, quem controla a
relação, o que significa a relação sexual e o amor. Os personagens questionam:
se, neste momento, você pudesse dar um novo rumo à sua vida e qual seria
ele? A peça leva os personagens ao limite desse questionamento. Sem
meios-termos, os personagens se veem obrigados a revelar sua verdadeira face,
provavelmente eclipsados pelo desastre que os rodeia!. (Ainda extraído do “release” já mencionado).
A tragédia pela TV.
Tão perto...
“Acostumado a escrever
peças que abordam assuntos amorais e inquietantes, cujo foco está no desespero,
que, muitas vezes, está por trás de atos violentos e sádicos, que, todos os
dias, enchem a primeira página dos jornais, o dramaturgo é motivado, em sua
escrita, por um forte senso de moralidade. ‘O grande bem pode vir de mostrar uma grande
maldade’”, afirma LABUTE. (Idem)
Para a atriz LETÍCIA ISNARD, “MARCO ZERO” “é um ponto de
mudança, de recomeço, o momento-chave em que a nossas escolhas definem todo o
nosso futuro, quando o acaso gera oportunidades inesperadas, nos colocando
diante de decisões absolutamente determinantes. ‘Sempre me interessei por esse segundo de suspensão antes da
decisão que compromete toda a nossa vida. Quantas vidas temos em uma? Quantos
futuros desperdiçamos a cada acaso que nos atravessa, a cada escolha que
fazemos?’, afirma a atriz.
Coragem, Ben!
Depois de tantas
informações e comentários, interessantíssimos e completos, sobre o espetáculo,
graças ao – repito – excelente
“realease”, preparado pela produção/assessoria de imprensa do espetáculo,
só me resta acrescentar comentários pessoais sobre o que me foi proporcionado
ver na noite da última 3ª feira, 8 de
dezembro (2015), no Teatro de Arena da Caixa Cultural Rio de Janeiro.
Quanto ao texto, todos os elogios seriam
insuficientes. Além da genial ideia, NEIL
LABUTE escreve com uma fluidez (a tradução de GUSTAVO KLEIN contribui para isso), que é muito fácil, para o
espectador, acompanhar todo o drama vivido pelo casal, aproveitando para tirar
conclusões a respeito do caráter dos dois. Heróis ou vilões? Teriam eles o
direito de levar adiante tão arrojado plano? O egoísmo não seria reprovável, naquela situação, mais ainda do que o
é, em qualquer outra? O que se vê, em cena, é apenas a representação de uma DR
(discutir a relação) ou não estaria em jogo o futuro de outras pessoas,
totalmente inocentes, a esposa de BEN
e suas filhas? Sem falar no universo de pessoas que cercam ABBY. Não seria um crime a concretização daquele plano, jamais
perdoado? Como avaliar a falta de coragem de assumir uma situação tão absurda?
Sou fã, incondicional,
do talento de NEIL LABUTE. Se já o
era, antes, reforcei, mais ainda, minha admiração por seu trabalho de dramaturgo.
Acomodação?
O brilhante texto de LABUTE poderia não ter ganhado o destaque que merece, se a direção do espetáculo caísse no colo de
um outro diretor. IVAN SUGAHARA,
inteligente como é, percebeu que não deveria colocar, na peça, mais cores do
que já o fizera LABUTE. Ou seja,
parece que dirigiu o espetáculo apenas observando as possíveis rubricas do autor.
Não inventou o que não estava escrito. Não foi além do que deveria ter ido e
nos apresenta um espetáculo enxuto. Estou convencido de que o que é dito e representado em cena é o
suficiente para passar, ao espectador, tudo o que seria do interesse do autor. Brilhante trabalho de direção!
Nossa vida é um/o caos!
Gostei muito de ver a
boa “performance” de TÁRIK PUGGINA
e, mais ainda, a sensacional interpretação de LETÍCIA ISNARD, a quem a maternidade parece ter feito um grande
bem. Como está excelente, na pele de ABBY!
TARIK também se apresenta com bastante correção,
mantendo, durante todo o tempo de duração do espetáculo, a postura de
subordinado, uma inferioridade que deve custar muito, ao personagem, por não
poder (ou não ter coragem de) assumir o protagonismo numa decisão tão marcante
em sua vida. Ele está numa posição de inferioridade, na relação e pela condição
de subordinado à amante/chefe. Não pode dar as cartas, não pode conduzir a
relação.
Por outro lado, a condição de superioridade,
de chefe sobre o subordinado, talvez seja o que permite à LETÍCIA um destaque em cena. A personagem, consciente de que teria
menos a perder do que BEN, com a
execução do ardiloso plano, não pensa duas vezes, quando cobra dele a tão
esperada e corajosa decisão, chegando ao requinte de humilhá-lo.
Aplausos
para a dupla!
Ben e Abby.
E o que dizer do
fantástico cenário, de AURORA DOS CAMPOS, com certeza, um dos pontos
altos desta montagem?! “Disseram” a ela, certamente, qual seria o local em que
se passaria a ação e a localização desse espaço. AURORA, com sua genialidade, projetou um cenário como ele deveria
ser. Apenas a sala de estar da casa de uma pessoa de classe média? Não! Não
apenas isso! A proximidade do apartamento de ABBY com o local do atentado terrorista, combinada ao momento conturbado
da relação entre o casal, fez com que a cenógrafa
nos mostrasse um apartamento completamente fora dos padrões esperados. Tudo revirado,
empoeirado, em estado de degradação, revelando o momento íntimo daquele casal
de amantes. O ambiente é o caos exterior, revelando o interior. E, ainda por
cima, o espaço cênico não fica
totalmente à mostra do espectador, visto que toda a área de encenação,
representando a sala do apartamento, é cercada por uma tela de proteção? Proteção?
Ou isolamento? Trabalho digno de
prêmios!
E o que falar da
fantástica luz, de PAULO CÉSAR MEDEIROS, revelando o pouco
que merece ser visto e ocultando o muito que deve ser ocultado, entremeada com
oscilações de intensidade e movimento?! Perfeita!
Ultimamente, tenho-me dedicado bastante a
analisar a luz de um espetáculo teatral.
Sempre admirei tal elemento, porém, de um tempo para cá, passei a valorizá-lo
mais, graças aos excelentes profissionais de que dispomos, como o PAULINHO, e por me dar conta de quão
importante é, para uma montagem, a iluminação, podendo agregar muitos valores a
um espetáculo ou colaborar para a sua ruína.
Há, ainda, para compor a ambientação da peça,
uma boa direção musical, de RODRIGO LIMA, reproduzindo o caos
sonoro daquele momento e ajudando a criar o clima necessário para a observação
de tudo o que se vê em cena.
Panorâmica do cenário.
O figurino
da peça, de FLÁVIO SOUZA, é o que
menos ocupará a minha atenção, não por motivos negativos; ao contrário: é pelo
excesso de simplicidade e adequação à proposta. Nada que se destaque, além da
sobriedade das roupas, ajustadas a cada personagem.
Outro detalhe, que, também, tem merecido a
minha atenção, ultimamente, com relação ao TEATRO,
é a qualidade das artes, criadas
para divulgar as peças, em “banners”, em programas ou em qualquer outro veículo
de divulgação. Gosto muito da arte
criada para este espetáculo, creio que da autoria de LUCIANO CIAN, responsável, segundo a ficha técnica, pelo projeto
gráfico. A imagem dos dois atores caindo, como se fossem vítimas daquela
tragédia, pode ser entendida como uma metáfora, relativa à vida de cada um,
projetando-se ao chão, ao mesmo tempo que representa dois corpos (e mentes)
soltos no espaço, indo ao chão, ou para um buraco embaixo dele. Trabalho inteligentíssimo!
O final deste ano de 2015 ficará
marcado, na história do TEATRO
BRASILEIRO, como um ano de grandes estreias, ao apagar dos refletores e ao
fechar do pano. “MARCO ZERO”, sem
dúvida, é um dos grandes espetáculos que encerram a temporada 2015. Espero que
continue em cartaz em 2016!
Antes da tragédia.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Neil LaBute
Tradução: Gustavo
Klein
Direção: Ivan
Sugahara
Co-direção: Simone
Beghinni
Elenco: Leticia Isnard e
Tárik Puggina
Direção de
produção: Aline Mohamad
Produção
executiva: Amora Xavier
Cenário: Aurora dos
Campos
Figurino: Flávio
Souza
Direção
musical: Rodrigo Lima
Iluminação: Paulo
César Medeiros
Fotos: Dalton
Valério
Marketing
Digital: Laura Limp
Projeto Gráfico: Luciano
Cian
Administração Financeira: Amanda
Cezarina
Realização: Nevaxca
Produções
Idealização: Tárik
Puggina
SERVIÇO:
Temporada:
Até 20 de dezembro (2015)
Local:
Caixa Cultural Rio de Janeiro – Teatro de Arena (Av. Almirante Barroso, 25 –
Centro – Rio de Janeiro)
Telefone: (21) 3980-3815
Dias e Horários:
De 3ª feira a domingo, às 19h. Em dezembro, sessão extra, nos dias 12 e 19
(sábado), às 17h.
Ingressos:
R$20,00 (meia-entrada a quem tiver o direito ao benefício)
Gênero:
Drama
Duração:
75 minutos
Capacidade:
170 lugares
Classificação:
16 anos
Bilheteria:
a partir das 10h
(FOTOS:
DALTON VALÉRIO.)
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Excelente espetáculo!
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