domingo, 1 de junho de 2014


OS JAVALIS

 

 

(O TEATRO DO ABSURDO, QUEM DIRIA, ACABOU NA GÁVEA.)

 

 

 

 

 

 


            Faz alguns meses, recebi um telefonema de um jovem ator, grande amigo, cuja carreira acompanho desde seu início.  Sou avesso a telefone e não tenho o hábito de me prolongar nas ligações, as quais, geralmente, mais recebo do que efetuo e não ultrapassam alguns poucos minutos.  Naquele dia, porém, a bateria quase descarregou por completo, pois ficamos, por cerca de uma hora, numa conversa que me deixou muito feliz. 

 

Ele pedia a minha opinião sobre permanecer vinculado a um contrato com uma emissora de TV ou se dedicar a um projeto de montar uma peça, arcando com a direção, atuação e possível produção, se não encontrasse quem a financiasse.

 

Falava de um modo tão apaixonante sobre aquilo, que cheguei a imaginar, do outro lado da linha, um brilho especial nos seus olhos, compatível com seu tom de voz.  Eram empolgação e emoção ao extremo.  Senti o quanto a montagem daquele espetáculo seria importante para ele.  E, como, para amigos, não se deve negar nada, não só lhe dei a maior atenção, feliz por sua felicidade, como lhe passei os meus palpites acerca de tentar fazer os dois trabalhos paralelamente, o que todos sabemos ser uma tarefa hercúlea.  Mas tudo dá certo, quando se deseja e se tem força e garra para lutar por aquilo em que se acredita.  Ele acreditava muito, lutou e conseguiu.

 

            OS JAVALIS, texto de GIL VICENTE TAVARES, direção de EMILIANO D’AVILA, com o próprio EMILIANO e RAFAEL MEDRADO, no elenco.

 

            O espetáculo, livremente inspirado num dos clássicos do chamado Teatro do Absurdo, O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, pode, e deve, por isso mesmo, enquadrar-se em tal categoria, a qual muito me agrada.  Jamais deixei de assistir a várias montagens das peças dos grandes mestres desse tipo de TEATRO.

 

 

 


Emiliano D’Ávila e Rafael Medrado.

 

 


            Para ilustrar um leitor pouco familiarizado com ele, aproprio-me, um pouco, do verbete da Wikipédia, com adaptações, e passo a informar-lhe que o Teatro do Absurdo foi um termo empregado, pela primeira vez, em 1961, pelo crítico húngaro, radicado na Inglaterra, Martin Esslin, tentando sintetizar uma definição que agrupasse as novas obras de dramaturgos de diferentes países, que, apesar de serem completamente diferentes em suas formas, tinham, como centro de sua obra, o tratamento de aspectos inusitados e inesperados da vida humana.  Teatro do Absurdo é, então, a designação que agrupava, inicialmente, as peças teatrais de vários dramaturgos europeus, principalmente no final dos anos 1940, após o fim da Segunda Guerra Mundial, e nos anos 1950 e 1960.  É uma forma do teatro moderno, que se utiliza, para a criação do seu enredo, das suas personagens e de seu diálogo, de elementos do ilógico.  Um dos antecessores deste procedimento dramático teria sido Alfred Jarry (Ubu Rei 1896), e, entre seus principais dramaturgos, Esslin destaca o romeno, radicado na França, Eugène Ionesco, o irlandês Samuel Beckett, o russo Arthur Adamov, o inglês Harold Pinter, o espanhol Fernando Arrabal, o francês Jean Genet e o americano Edward Albee.

 

 


 


O tiro de misericórdia.

 

 

 

 
            A sinopse da peça é esta:  Um homem solitário tem sua casa invadida por um pretenso vendedor de produtos de limpeza, que, desesperado, anuncia o fim da humanidade, segundo ele, devastada por javalis.  Inicialmente desacreditando, o dono da casa começa a ser levado pelo discurso do vendedor e por eventos estranhos que acontecem em sua casa e no seu entorno.  A trama é conduzida por uma potencial ameaça que vem de fora, mas que, em momento algum, se revela ou é confirmada.  Desconstruindo e edificando questões, essa situação entre tensão e humor é o estopim para as transformações que encaminharão ambos os personagens a caminhos surpreendentes.
 

           

            O texto da peça é muito bom e bastante contemporâneo, embora tenha sido escrito em 1998 e sua primeira montagem tenha ocorrido em 2008, e contempla as mazelas do dia a dia  de uma sociedade moderna. 

 

Aqui, transcrevo, para algumas considerações e comprovação do que disse no parágrafo acima, trechos extraídos do programa do espetáculo, sem crédito, mas que creio serem do próprio autor da peça:

 

 
“Há um tempo, assustados com a fragilidade das pessoas, frente a notícias completamente estapafúrdias, ilógicas e equivocadas (proliferadas, principalmente, em redes virtuais), vendo suas reações de crença, adesão e aceitação, pensamos no quanto OS JAVALIS soaria atual, urgente, como forma de questionar essa histeria de ideias, notícias e ameaças.”
 

 

Imagine-se invadido, em sua privacidade, por alguém que adentra sua casa com a notícia de que javalis estão devorando a tudo e a todos e que só você e ele, o emissário da esdrúxula notícia, ainda estão vivos, mas  por pouco tempo.  Como reagir?  Acreditar ou não?  Aceitar ou não a “realidade” de que lhe resta pouco tempo de vida?  Acreditar ou não?  Acreditar ou não em tudo o que é veiculado pela internet?  Como reagir a cada enxurrada de informações que caem nos nossos colos, minuto a minuto, das mais insignificantes às mais terríveis e perturbadoras?

 

 
“Não tardou e algo mais premente aconteceu no país.  As manifestações, que levaram às ruas milhões de pessoas, revelavam, também, milhões de insatisfações, desejos, vontades; e diversos assuntos, como golpes, violência e corrupção, vieram à tona.  Mais uma vez, lembramos da peça, que havia sido escrita em 1998, montada em 2008 e, ainda hoje, parecia-nos ter o que dizer, ângulos diferentes para se provocar e perturbar o espectador.”
 

 

            São novos tempos, de conscientização, de protestos, de cobranças; tempos de destruir, para reconstruir, não no sentido físico, material, mas no campo dos valores éticos e morais, no intuito de resgatar uma cidadania que vem sendo deixada de lado há algum tempo.  Então, a imagem das manifestações populares que vêm emergindo, espontaneamente, nos últimos meses, não têm uma relação direta com a metáfora que o texto explora?  Total simbiose. 

 

 


           


Rafael e Emiliano.

 

 


 

 
A premissa de invasão de seres estranhos, devastando uma cidade é recorrente na história da literatura.  Essa alegoria do totalitarismo é marca indelével na história da humanidade e foi registrada, com requintes de horror, em livros, fotos, depoimentos e filmes.  A Hora dos Ruminantes, Guerra dos Mundos, O Rinoceronte, diversas obras metaforizavam o inimigo lá fora, a invasão do estranho, do diferente.  Cinema e teatro não ficaram de fora.”
 

 

Sei que há de aparecer alguém, criticando a peça, dizendo que o texto não contém nenhuma originalidade, que o tema é “batido” e que, portanto, não é bom.  Todos os temas podem ser “batidos” e originais, e bons, quando bem escritos.  E este texto é muito bem escrito.  Todos os temas, no fundo, são universais e sempre existiram e foram explorados, em todas as artes.  OS JAVALIS, é certo e inegável, guarda uma semelhança muito grande com O Rinoceronte, entretanto a qualidade do texto é indiscutível e há nele uma particularidade que o torna original em relação ao clássico de Ionesco: aqui, os javalis, que estão dizimando a humanidade, são os mesmos que servem de alimentação às pessoas, num lauto almoço de domingo.  Reserve um tempinho para refletir sobre isso.

 

 

 
Em OS JAVALIS, dois atores, dois personagens, bem perto do público, estarão expostos aos medos, loucuras, desatinos, solidões e pânicos, que não são mais que o pão nosso de cada dia.  A violência está na invasão do outro, na palavra manipulada, nas ideias deturpadas, na fragilidade de cada um, que existe “como rês desgarrada, nessa multidão boiada, caminhando a esmo.” (Lamento Sertanejo – Dominguinhos)
 

 

 

            A proximidade dos atores/personagens com a plateia é um fator fundamental na montagem deste texto.  Foi escrito para ser representado em ambientes intimistas.  Não é só o personagem de EMILIANO D’ÁVILA que tem sua privacidade invadida, exposta, por um mensageiro do apocalipse.  Cada um de nós, confortavelmente sentado em sua poltrona, é uma vítima em potencial dos javalis que estão lá fora.  Cada um de nós se sente ameaçado.  Cada um de nós luta por sobreviver a uma catarata de injustiças, de impunidades, de desmandos, de desrespeitos, de agressões das mais diversas ordens…

 

 

 


 

 


Sobre a ficha técnica do espetáculo, vale a pena destacar:

 

TEXTO : GIL VICENTE TAVARES – Não precisaria repetir: gostei muito.

 

DIREÇÃO : EMILIANO D’ÁVILA - Boa e convincente, em se tratando da primeira experiência do ator nessa área.

 

ELENCO : EMILIANO D’ÁVILA e RAFAEL MEDRADO - Bom trabalho dos dois.  EMILIANO, às vezes, por conta da emoção, se excede um pouco no volume de voz, o que é desnecessário e força as cordas vocais do ator.  O amigo aqui já lhe deu a dica, que foi muito bem aceita e reconhecida por ele.  Se mantiver o mesmo tom de voz que utiliza na maior parte de sua atuação, estará perfeito.  Representa com muita verdade e determinação. 

RAFAEL é um grande ator baiano, desconhecido do público carioca, que o Rio de Janeiro e o Brasil precisam conhecer.  Muito regular em sua interpretação, demonstra uma naturalidade muito grande e sabe modular muito bem a sua voz, para revelar o caráter de seu personagem. 

Dois bons trabalhos.

 

 

 


 

 


ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO : BRUNO HEITOR, CIRO SALES e NATÁLIA ROSA.

 

CENÁRIO : LORENA LIMA – simples, porém bem ajustado à proposta do espetáculo.




FIGURINO : HUGO LEÃO - também simples, mas dentro da proposta da peça. 

 

ILUMINAÇÃO : FÁBIO ESPÍRITO SANTO e JOÃO GIOIA – cumpre, naturalmente, sua função.

 

TRILHA SONORA ORIGINAL : RICCO VIANA – Um elemento muito importante nesta montagem.  RICCO, vencedor do 8º Prêmio APTR de Teatro, pelo espetáculo Jim, soube escolher, minuciosamente, as canções e todos os outros sons que vão sublinhando cada momento de suspense no espetáculo.  Excelente trabalho!

 

Para mim, foi uma agradabilíssima surpresa, pois confesso que a curiosidade me impelia mais a ver a peça do que a certeza de que iria considerá-la de boa qualidade, mas confesso, com muita alegria, que superou, em muito as minhas expectativas e me faz recomendá-la. 

 

Vale muito a pena conferir OS JAVALIS, no Teatro Maria Clara Machado, no Planetário da Gávea, de 6ª feira a domingo.  Sextas-feiras, às 20h30min; domingos, às 20h.  Até 15 de junho.

 

 

 


 

 

“Pareciam homens de longe.  Só de bem perto é que se via o quanto eram repugnantes.” (fala do invasor)

 

 




Emiliano D’Ávila.

 

 

 

 


Emiliano, eu e Rafael.

 

 

 


 

(FOTOS: PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DA PEÇA e BRUNO HEITOR.)

 

 

 

 

 

 

 

 

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