INTIMIDADES
O DIFÍCIL É DEIXAR DE SER “EU”
PARA SER “NÓS”.
Está
em cartaz, no Teatro Gláucio Gil,
até o final de janeiro, de sábado a 2ª feira, às 20h, o espetáculo INTIMIDES, texto de GUSTAVO MACHADO, com direção de BRUCE GOMLEVSKY, interpretado por ROBERTA ALONSO, idealizadora do
projeto, e JOAQUIM LOPES.
O
espetáculo, que já fez excelente carreira em São Paulo , no Teatro Eva Herz, é o terceiro texto do
também ator GUSTAVO MACHADO, que se
propõe a levar para o palco o embate entre um casal, junto há nove anos, numa
discussão de relacionamento, durante a qual revelam o que de mais íntimo existe
dentro de cada um, em relação ao outro. Nove anos de troca, renúncia, ciúme, desejo, saudade,
disputa, coragem, covardia, camaradagem, culpa, saudade, aconchego, ternura,
desassossego, paixão e solidão.
A peça questiona como um casal
pode partir de um ponto de absoluta intimidade entre duas pessoas para um final
feliz.
O
título da peça não poderia ter sido melhor escolhido, já que a etimologia do
vocábulo “intimidade” está no Latim “intimus” (íntimo), que significa “ir mais profundo, o mais afastado;
superlativo de “interus”, (interior), pertencente às regiões mais profundas do
ser”.
Embora não tenha sido veiculado na mídia, a peça tem um outro título, que bem pode sintetizar o que se vê em cena: A ESTONTEANTE E ETERNA PELEJA ENTRE A MULHER DIÁFANA E O HOMEM INDOLENTE.
Em
cena, os dois personagens são anônimos (Homem e Mulher), uma vez que ali estão
representando qualquer pessoa da plateia.
Muitos espectadores devem atingir uma identificação, total ou parcial,
com o homem ou com a mulher em cena.
Da
forma mais cruel e de peito aberto, os dois vão recordando os momentos de
individualidade de cada um (Quando teriam sido mais felizes?) e desfilando uma série
de acusações pessoais, mútuas, uma "lavagem de roupa suja", num tom menos de cobrança e
mais de vingança, criando um clima de tensão e desconforto para o público, que
nem consegue tomar a parte de algum dos contendores, já que fica, praticamente,
impossível dizer quem teria razão e, consequentemente, sairia vencedor do
“octógono”, para usar uma palavra “da moda”.
E isso é facilmente explicável: a cada investida de um dos lutadores,
corresponde um contragolpe tão “justo” quanto aquele que o gerou. Vai ficando, cada vez mais claro, ao longo
das investidas, que todos somos humanos e, portanto, passíveis de falhas, de
erros, de injustiças contra o outro, de equívocos afetivos.
No
programa-cartaz da peça, a atriz ROBERTA
ALONSO diz que “A intimidade é a
coisa mais legal que tem. Pode parecer
que não, mas é. É na intimidade que você
se revela, sem medo e sem pudor. Só a
intimidade é capaz de fazer, em pouco tempo, nascer relações tão ricas que nos
causam um turbilhão de emoções e sentimentos, que nos deixam expostos, sim, mas
expostos pra vida, pro amor.”
Eu
diria que as palavras de ROBERTA
são perfeitamente ajustáveis ao brilhante texto de GUSTAVO. Numa situação de
intimidade, o indivíduo é capaz de deixar transparecer a sua verdadeira
identidade, a comunhão entre o que os outros pensam de mim e o que eu realmente
sou, com predominância desta última situação.
A pessoa cresce, cria forças, para despejar, sobre o outro, toda sorte
de inconformismo por uma expectativa não concretizada. A idealização do amor cede lugar ao realismo "cruel"
da vida a dois.
Conheci a
auxiliar de uma dentista, que vivia reclamando do marido (a auxiliar), até que,
um dia, a dentista teve a oportunidade de conhecer o homem e travar uma boa conversa
com ele. Dias depois, dirigiu-se à
auxiliar, dizendo-lhe não entender por que aquela reclamava tanto do marido,
que lhe parecera ser um bom homem. Imediatamente,
veio a réplica: “A senhora acha, doutora?
Então vai comer um quilo de sal com ele!”.
“Comer
um quilo de sal” na companhia de alguém deve ser o tempo suficiente para se
descobrir que o príncipe era um sapo disfarçado ou que a princesa era uma bruxa
sob encanto.
Cabo-de-guerra ou, simplesmente, GUERRA.
Já
o ator JOAQUIM LOPES, no já
mencionado programa, vem com “Dizem que
a intimidade estraga tudo. Mas como
viver sem intimidade? Intimidade com
você mesmo, com parentes, amigos, com uma parceira ou parceiro. É através dela que mostramos ou tentamos
mostrar quem somos de verdade. E a
verdade, às vezes, é dura, e muitos de nós entramos num ciclo de negação. No momento em que deixamos que alguém olhe a
nossa alma, mostramos nossa essência. Às
vezes, mostramos amor; às vezes, ciúme; às vezes, culpa...”.
O
que pode ser estragado pela intimidade?
A mentira, o faz-de-conta, o me-engana-que-eu-gosto, o “statu quo”
forjado de quando se vivia o encantamento do amor, que temos de saber que não é
cor de rosa vinte e quatro horas por dia?
O homem, sendo um ser social e gregário, não pode viver sozinho e, por isso mesmo, vê-se na contingência de dividir sua intimidade com outrem, permitindo a este explorar o seu ego. Daí, advêm os conflitos, tão bem abordados no texto da peça.
O homem, sendo um ser social e gregário, não pode viver sozinho e, por isso mesmo, vê-se na contingência de dividir sua intimidade com outrem, permitindo a este explorar o seu ego. Daí, advêm os conflitos, tão bem abordados no texto da peça.
GUSTAVO MACHADO, também no programa da
peça, reproduz parte de um diálogo marcante no seu texto: “‘Humor é amor com H’, diz o Homem. Ao que a Mulher responde: ‘Amor é simplesmente
estar por perto’. Ao que ele responde,
perguntando: ‘Quão perto’? Ela: ‘Perto o
suficiente’. Ele: ‘Suficiente pra quê?' E assim vão.” Ou seja, um
questionamento leva a outro e parece que nunca vai ter fim.
Se
“viver é uma arte”, que “arte maior” seria viver a dois,
dividindo espaços e intimidades? E é sempre bom lembrar que, só nas novelas de TV, as pessoas acordam maquiadas e penteadas, as mulheres sempre usando cílios postiços e ninguém desperta com mau hálito. Abrir
mão da individualidade por uma parceria nem sempre compartilhada?
O
espetáculo em questão merece ser visto por quem admira um bom TEATRO, graças ao grande achado, que é
o texto, à competentíssima direção de BRUCE e às atuações de ROBERTA e JOAQUIM. Estes se entregam,
de corpo e alma ao trabalho de representar.
Nem sei se mais de corpo do que de alma.
Há cenas de uma quase violência física, guardadas as devidas proporções,
em função de técnicas que devem ter sido muito bem treinadas pelos dois (ROBERTA é praticante de algumas artes
marciais), que hipnotizam e tensionam a
plateia. É quase impossível piscar
durante os setenta minutos de duração da peça.
Há um desfile de golpes marciais, tapas, socos e outras formas de
“carinho”, que colaboram para a criação do ambiente e a exploração do assunto em discussão. Excelentes os trabalhos dos
dois atores. São dois competentíssimos profissionais.
Sob domínio. Até quando?
A
direção de BRUCE é muito boa. Ousada e,
ao mesmo tempo, simples, sem grandes sofisticações. Por conta da excelência do texto, creio que
seu trabalho foi “apenas” (detalhe para as aspas) levar os atores a atingir o
nível de “intimidade” necessário
para fazer com que a “verdade” imperasse no palco. Dar o tom que o texto pedia. Como, na ficha técnica do espetáculo, não
consta nome de um profissional responsável pela direção
de movimento, se não tiver havido uma lamentável omissão, acredito que toda
a marcação tenha sido planejada e executada pelo próprio BRUCE, o que torna seu trabalho de direção mais digno de elogios.
A
cenografia ficou a cargo do grande NELLO MARRESE, que optou pela
simplicidade e pela plasticidade (talvez sugeridas pelo autor e/ou diretor do
espetáculo). As cenas se dão num
praticável, como se fora um ringue, sem cordas (portanto, sem limites),
ligeiramente inclinado para a frente. Ao
fundo e nas laterais, há uma parede, toda forrada de tule branco, que, ao
receber luzes coloridas, confere, ao espaço cênico, uma beleza ímpar e
sugestiva para cada situação, vivida em outro plano, como, por exemplo, o
velório da avó do protagonista (excelente cena).
Os
figurinos são de RITA MURTINHO. Um simples vestido estampado para ELA e uma calça
jeans, bem casual, para ELE, além de uma camisa social e um paletó de veludo preto
(ainda bem que o ator o veste durante pouco tempo, neste verão senegalês do Rio
de Janeiro). Durante uma parte do
espetáculo, os personagens vestem um a roupa do outro, uma bela sacada da
direção. Assistam e procurem descobrir a
simbologia desse ato.
Excelente
é a iluminação de ELISA TANDETA, cujo trabalho, creio,
ainda não conhecia ou, pelo menos, não me recordo no momento. As trocas de luz são perfeitas, para realçar
cada detalhe das cenas.
MARCELO ALONSO NEVES, um craque das
trilhas sonoras, acertou, mais uma vez, neste trabalho. Boa a sua pesquisa, que selecionou sons
perfeitos para sublinhar a atmosfera de cada situação encenada.
Intimidades.
Estão
de parabéns todos os envolvidos no projeto!
Confesso
que a única coisa que me atraía ao Teatro
Gláucio Gil era o nome do diretor, uma vez que, preconceituosamente (nunca se deve esquecer: preconceito é uma
burrice), não esperava ver um espetáculo tão bom.
“Bom” é pouco; é ÓTIMO!
(FOTOS DE
DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)
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