SAMBA FUTEBOL CLUBE
(DIVERTIMENTO SEM ALIENAÇÃO)
O
juiz trila o apito, pela terceira vez, e começa a partida, exatamente às
19h30min, numa sexta-feira de final de outono, 30 de maio de 2014, diretamente do estádio do CCBB (Teatro II).
Essa
foi a forma original de se anunciar que iria começar o espetáculo SAMBA FUTEBOL CLUBE, um excelente
musical, que parte do esporte bretão para falar de duas das preferências nacionais:
o samba e o futebol. No lugar das
campainhas, dos gongos ou, mesmo, das tradicionais pancadinhas ou batidinhas de
Molière (alguém se lembra disso?), o ator Chris Penna, com uniforme de juiz de
futebol, entra em cena, três vezes, dando, respectivamente, um, dois e três
apitos, como indicativo da proximidade do início da peça.
Aos
olhos de qualquer um poderia passar por mais uma experiência oportunista, "para
se ganhar dinheiro", por conta da realização desta tão despropositada Copa do
Mundo, realizada no Brasil, um dos maiores absurdos que já se viu, nesta terra
abençoada por Cabral e amaldiçoada pelos (des)governantes. Mas não é nada disso.
SAMBA FUTEBOL CLUBE é um espetáculo
delicioso, para ser degustado aos poucos e com muito prazer, pois se trata de
um belíssimo trabalho de pesquisa, irretocavelmente levado ao palco.
Podem
pensar - o que seria até natural - aqueles que são aficionados por futebol que
o espetáculo só seria do interesse desse tipo de pessoa e que só a eles
agradaria. No caso, pode-se até
visualizar uma plateia formada, exclusivamente ou em sua grande maioria, por
homens. Mas ocorre que a peça é para
todos e agrada a todos, até àqueles que possam vir a não se interessar pelo esporte
de origem inglesa. Não é uma partida de
futebol; é um espetáculo de TEATRO,
sobre futebol, e que explora, muito bem, de forma inteligente e leve, o
universo desse esporte.
Elenco: Em cima (da esquerda para a
direita): Luiz Nicolau, Pedro Lima, Cristiano Gualda, Jonas Hammar. Abaixados (no mesmo sentido): Daniel
Carneiro, Rodrigo Lima, Gabriel Manita e Alan Rocha.
Em SAMBA
FUTEBOL CLUBE, os oito atores se alternam entre o time dos jogadores
e o dos torcedores e cada um encarna dois personagens: o ídolo e o fã torcedor.
A partir deste jogo de duplos, são
criadas as diversas situações dramáticas. Os atores formam, também, a banda do
espetáculo, executando, ao vivo, todas as músicas. É um espetáculo multimídia, que mistura
música, teatro, dança e vídeo.
Para
que o espetáculo tomasse a forma como é apresentado ao público, foi feita uma excelente
pesquisa musical e outra sobre a história do futebol entre nós, trazido por Charles Miller, um brasileiro, de
ascendência inglesa, nascido no Brás, mas que foi estudar na Inglaterra.
O ótimo
roteiro é assinado por GUSTAVO GASPARANI,
que, além de excelente ator (está em cartaz, na terceira temporada vitoriosa, agora
no Teatro Poeirinha, com uma
instigante montagem de Ricardo III),
já demonstrou ser uma referência dentre as pessoas que melhor sabem fazer TEATRO MUSICAL no Brasil. São dele cinco espetáculos que fizeram muito
sucesso nos últimos anos: Otelo da Mangueira, Opereta
Carioca, Oui, Oui...A França é Aqui!, A Revista do
Ano e As Mimosas da Praça Tiradentes,
que cumpriram temporadas de sucesso de público e crítica, entre os anos de 2005
e 2012, sendo assistidos por mais de 150 mil pessoas, indicados a mais de 40 prêmios, e renderam a GASPARANI os Prêmios Shell 2009 de melhor autor e 2012 de melhor ator. Já provou seu talento tantas vezes e, agora,
com este seu novo espetáculo só faz ratificar a sua marca nesse gênero. GUSTAVO
adaptou ou utilizou, na íntegra, textos de grandes nomes da literatura
brasileira, em todos os gêneros, tais como Paulo
Mendes Campos, José Lins do Rêgo,
Nélson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar e Armando Nogueira, além de textos de sua autoria. Uma verdadeira seleção de craques, não acham?
A
peça não mostra o futebol como sendo “o ópio do povo”, como se costuma
dizer. Apresenta-o como uma manifestação popular,
que surgiu, ainda no século XIX, como esporte de elite, praticado por pessoas
da sociedade, mas que caiu no gosto do povo, até se tornar, realmente, o esporte
nacional, a partir da conquista, pela primeira vez, em 1958, de uma Copa do
Mundo.
Coincidentemente, ontem,
o ator Tonico Pereira, grande
profissional do TEATRO, postou, em sua página de uma rede social: “Sabemos que o futebol é usado politicamente, mas sabemos, também, que,
antes de tudo, é cultura!!!” É a
mais pura verdade, Tonico, e uma pena que os maus políticos e os ditadores façam uso
dele para se promoverem ou para fortalecer um regime de exceção.
Assim foi em 1970 e
assim está sendo agora, às vésperas de uma Copa do Mundo, que poderia, e
deveria, ser realizada em qualquer outro país que não fosse o Brasil, tão
carente de tudo. Nem é preciso falar da
fortuna absurda aplicada nesse evento elitista e tão afastado dos verdadeiros interesses
da população. Também desnecessário seria
falar do quanto essa conquista da realização do torneio em território nacional
pode vir a granjear votos para os atuais governos, federal, estadual e municipal. Mais desnecessário, ainda, seria falar do
quanto se vem roubando, dos bolsos do povo, para engordar contas bancárias
pessoais.
Com relação a 1970,
quando o Brasil se tornou tricampeão mundial de futebol, o ditador de plantão
usou esse esporte como instrumento para calar a boca daqueles que sofriam com o
regime e se manifestavam contra ele e, principalmente, para ocultar as
barbáries e os assassinatos cometidos nos porões da ditadura. Usou-se o futebol como veículo para a
alienação do povo e, infelizmente, por mais algum tempo, essa estratégia
funcionou. Quem sabe, até hoje, não seja mais ou menos assim? A Copa do Mundo de 2014 está aí para mostrar isso, ainda que muitos venham se manifestando contra tal aberração.
Mas o futebol, pelo qual
não morro de amores, é, acima de tudo, cultura e, entre nós, encontrou um solo
fértil para crescer e produzir seus frutos.
O espetáculo se caracteriza por ser leve,
genuinamente recreativo, que se propõe a entreter o público, porém não deixa de
ser, também, crítico, quando aborda a Copa de 70, cena em que, ao som de Pra Frente, Brasil, se não estou
enganado, os atores assumem posições de bocas, ouvidos e olhos tapados, como
impunha a ditadura, enquanto é projetada a manchete de um jornal da época,
alusiva à repressão.
Em outro momento, foge à
sua proposta principal, quando, de forma interessante, porém um pouco
exagerada, presta uma homenagem àqueles jogadores que, por uma razão ou por outra,
caíram no ostracismo e não souberam, talvez, aproveitar seus momentos de
glória, para garantir um futuro e uma velhice tranquilos. O exagero a que me refiro é com relação a um
texto, dito pelo ator ALAN ROCHA,
que me pareceu um pouco piegas e fora do contexto. Creio que poderia, e deveria, ser retirado do
roteiro, sem causar qualquer prejuízo à cena da homenagem aos antigos craques.
Vamos a uma pequena
sequência de observações sobre a ficha
técnica:
ROTEIRO E DIREÇÃO – GUSTAVO GASPARANI: excelentes os dois. Os textos que não foram escritos pelos
grandes escritores já citados saíram da inteligência e da competência do GUSTAVO. São ótimos, à exceção, como já foi dito,
daquela história do jogador que perde o filho, bebê, afogado numa piscina e
acaba por se entregar à depressão e às drogas.
No roteiro dos textos, que está no programa da peça, não encontrei
nenhum que pudesse conter aquela narrativa, o que me poderia fazer crer ser da autoria do
roteirista, contudo foi extraído de uma entrevista do ex-jogador do Bangu, Marinho, protagonista daquela tragédia.
ELENCO – ALAN ROCHA,
CRISTIANO GUALDA, DANIEL CARNEIRO, GABRIEL MANITA, JONAS HAMMAR, LUIZ NICOLAU, PEDRO LIMA e RODRIGO LIMA. Quero todos
jogando no meu time. Há vaga para
qualquer um deles. Todos estão atuando
de forma irrepreensível, “batendo um bolão”, jogando em quatro posições –
interpretando, cantando, dançando e tocando instrumentos, vários, até violino –
dominando a bola, avançando com ela e marcando muitos gols. Um elenco coeso, que não nos possibilita
mencionar um destaque. Todos têm seus momentos
de solos e sabem aproveitar muito bem quando a bola lhes cai aos pés. CRISTIANO,
JONAS, LUIZ E PEDRO já são
velhos conhecidos dos espetáculos musicais e, a cada trabalho, se superam. Os outros quatro foram das melhores surpresas
que tive nos últimos tempos.
Ainda com relação ao
elenco, é importante realçar um aspecto, que vem se tornado uma constante nos
últimos musicais a que tenho assistido.
Um detalhe muito interessante e que faz a diferença: a versatilidade do
artista brasileiro. Refiro-me ao fato de
todos, neste espetáculo, tocarem diversos instrumentos musicais, a ponto de
formarem, eles mesmos, a banda que os acompanha em seus números. E se comportam profissionalmente, embora, em
suas carteiras de trabalho, se destaque a profissão: ATOR.
DIREÇÃO MUSICAL – NANDO DUARTE: ótima. Muito bons os arranjos.
DIREÇÃO DE MOVIMENTO E COREOGRAFIA – RENATO VIEIRA: muito
boas. Durante cerca de duas horas de
espetáculo, dividido em dois tempos, ou melhor, dois atos, a movimentação dos
oito atores em cena, assim como as marcações e as coreografias são determinantes
para o dinamismo do espetáculo.
CENOGRAFIA – MARCELO LIPIANI: boa, se bem que, necessariamente,
comedida, já que o grande destaque para a ambientação do espetáculo está nas
projeções, o que merecerá um comentário abaixo.
FIGURINOS: MARCELO OLINTO: muito bons. Bastante coloridos e diversos, contribuem
bastante para a beleza plástica do espetáculo.
ILUMINAÇÃO: PAULO CÉSAR MEDEIROS: dispensa comentários. Nada além de um “excelente”.
PREPARAÇÃO E ARRANJOS VOCAIS: MAURÍCIO DETONI; magnífico
trabalho. Colocou as vozes certas na
interpretação das muitas canções, em solo ou em grupos, e o resultado agrada
bastante aos ouvidos. Destaca-se o fato
de que todos os atores são excelentes cantores.
CENOGRAFIA DIGITAL: THIAGO STAUFFER (STUDIO PRIME): Pela primeira
vez, vejo esta rubrica numa ficha técnica.
Tenho visto, ultimamente, este elemento sob a forma de “videografismo”. Não sei se são, exatamente, a mesma coisa;
acho que não. Só sei que considero muito
interessante a utilização desse recurso cenográfico, de projeções de imagens de
diversos tipos, que tem sido uma atração à parte em alguns musicais mais
recentes, como é o caso de Cazuza – Pro Dia
Nascer Feliz, o Musical e Se Eu Fosse Você, para citar apenas
dois exemplos. Em SAMBA FUTEBOL CLUBE , a utilização das imagens
projetadas no telão, ao fundo do cenário, é de uma qualidade incrível e de uma
precisão cirúrgica, não ocorrendo a menor falha de sincronia entre o que é
projetado e as ações dos atores em cena. Penso
que já estava na hora de ser adicionada uma categoria nova às premiações sobre
TEATRO: cenografia digital. Seria um
exagero?
PESQUISA MUSICAL: ALFREDO DEL PENHO: belíssimo trabalho. A pesquisa de ALFREDO fez emergir, do fundo do baú, excelentes pérolas do cancioneiro
brasileiro ligadas à temática do futebol. Aqui, cabe um parêntese:
apesar de o título trazer a palavra “samba”,
muitas das 42 canções que fazem parte da trilha sonora da peça não pertencem a tal ritmo; há marchas, rocks, toadas,
baiões, xaxados e outros representantes da genuína música brasileira.
VISAGISMO: BETO CARRAMANHOS: ótimo.
BETO aproxima bastante os
atores dos traços dos personagens, partindo das principais características destes. É ótima e hilária, por exemplo, a caracterização
de CRISTIANO GUALDA, no segundo ato,
em Cristiano Geralda
(acho que é o nome do personagem), numa alusão ao aspecto de metrossexual do
jogador português Cristiano Ronaldo.
Cerca de mais trinta nomes
completam a ficha técnica, o que
prova o apuro como foi desenvolvido o projeto, até ele estrear no palco do CCBB.
Cabe aqui um
agradecimento a GUSTAVO GASPARANI e
a todos os envolvidos neste belo projeto, pela tentativa de resgatar a ideia de
que o futebol ainda pode voltar a ser um esporte popular, a despeito de ter
iniciado no seio das elites. É muito
importante isso, no momento em que tanto esforço é feito pelas “autoridades
governamentais” para afastar o povão dos estádios, com o infeliz advento desta
Copa do Mundo “da FIFA”.
No espetáculo, por
exemplo, há um momento, no texto, em que se fala de um Maracanã que abriga cem
mil pessoas, que fala da “geral”, do Maracanã como sendo “a nossa
catedral”... É outra, bem inferior a atual lotação do Maracanã. A "geral" desapareceu, dando lugar a assentos numerados. Pouco restou da antiga "catedral". Parafraseando o poeta
Drummond, esse Maracanã do espetáculo é apenas um retrato na parede. Mas como dói!
Na hora em que é cantada
a canção Nega Manhosa, de Herivelto Martins, não contive um
risinho, em função de a letra dizer que a mulher deve pegar uma “nota de cinquenta”
(naturalmente, outra moeda, que não o real), deixada pelo marido sob o rádio, e utilizá-la para ir à feira, jogar
no bicho e reservar o troco para que ele vá ao jogo do seu time de coração,
no Maracanã. Hoje, com R$50,00, não se
pode nem pensar em ir ao Maracanã.
Concluindo, saí do CCBB muito feliz com o espetáculo que
vi e o recomendo muito a quem goste ou não de futebol, mas, principalmente, a quem
aprecia o bom TEATRO. Isso o espectador vai encontrara lá, com
certeza.
Aproveito, também, para
lembrar que o espetáculo vai até o dia 14
de julho, portanto será exibido durante todo o transcorrer da Copa do
Mundo, de 5ª a 2ª feira, sempre no
horário das 19h30min. Que tal trocar a alienação por uma programação
cultural de verdade e de qualidade?
Esta foto foi
tirada no final do espetáculo, quando os atores sugerem que a plateia volte a
ligar seus aparelhos celulares e leve uma foto como recordação. Uma iniciativa muito simpática para com
aqueles que aplaudem de pé o espetáculo.
Eu e Cristiano Gualda.
Eu e Jonas Hammar.
(FOTOS: PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO,
MR. ZIEG – site sobre musicais - e MARISA SÁ.)